in Público 2011.01.20
Como é óbvio, os portugueses não viviam melhor há 40 anos. Há 40 anos os portugueses viviam com o que tinham.
Um grupo de empresários resolveu patrocinar um projecto designado Farol do qual fazia parte um inquérito aos portugueses. O resultado do inquérito foi aparentemente inesperado: 46 por cento dos inquiridos consideraram o actual cenário económico e social pior, ou muito pior, do que aquele que se registava há 40 anos, ou seja, antes do 25 de Abril; 74 por cento acha que o Estado deve contribuir sempre para a competitividade e o desenvolvimento de Portugal; e mais de metade, 54 por cento, diz que não estaria disposto a lançar um negócio próprio. Ou seja, de repente estava diante de nós um país que, tal como há 40 anos, parece continuar a não dar valor à liberdade política, que acha que o Estado deve ter um papel activo na economia e em que, para cúmulo, até o passar a ser patrão de si mesmo deixou de ser, como foi há 40 anos, um sonho de ascensão social que levou milhares de portugueses dotados de poucas habilitações e muita vontade de romper a pobreza familiar a erguerem empresas por todo o país e nos locais pa- ra onde emigraram.
Uma vaga sensação de incómodo acompanhou estes resultados. Quase como aquele remorso que se instala nos jornais sempre que se constata que faleceu um dos capitães que nos idos de 74 deu a voz pelo MFA e que com o tempo foi ficando esquecido. Mas dificilmente os resultados podiam ser outros, pois a democracia assentou o seu discurso fundacional não em como poderíamos ser um país mais rico, mas sim no combate à desigualdade e aos ricos, desígnio que pode satisfazer ímpetos justiceiros e alguma inveja, mas que nunca fez dos pobres menos pobres. Todo o esforço da democracia foi concentrado não em promover a livre iniciativa, mas sim em fazer dos portugueses utentes de serviços públicos que legitimavam o seu crescimento através desse combate à desigualdade. Consequentemente, o Diário da República transformou-se num novo Génesis de algo a que chamou justiça social: decretos, leis e portarias construíram um edifício legal que durante muito tempo nos disseram ser dos mais avançados do mundo, em que tudo e mais alguma coisa se pro- metia e garantia. Era como se bastasse escrever para ter. Não bastava, como agora se vê.
Esse discurso fundador do regime pós-74 desenvolveu-se em duas linhas preferenciais de argumentos: a demonização do passado e a promessa de crescentes benesses materiais. Naturalmente, quando estas últimas falham, o olhar sobre o passado altera-se. E assim o imenso período geralmente designado como "antes do 25 de Abril", sobretudo o dos governos de Marcelo Caetano, está para os portugueses como a Natureza para aqueles desiludidos da abundância que um dia trocam a civilização por aquilo que eles acham ter sido a saudável vida doutros tempos e que acabam a ter de ser resgatados mais mortos do que vivos dumas situações de risco em que ingenuamente caem.
Como é óbvio, os portugueses não viviam melhor há 40 anos. Há 40 anos os portugueses viviam com o que tinham. E que era geralmente pouco, porque pouco se tinha e também porque mesmo nos meios onde o dinheiro abundava a regra de vida era austera. Há 40 anos os portugueses sabiam que viviam um pouco melhor do que a geração dos seus pais e tinham como inquestionável que os seus filhos e netos viveriam melhor do que eles. Há 40 anos os por- tugueses achavam que "o Marcelo" dava reformas, escolas, estradas e criticavam-no por não dar mais. Como se o dinheiro desse dito "dar" não saísse do bolso dos portugueses.
Quarenta anos depois, os portugueses mantêm viva a mesma separação entre o dinheiro dos seus impostos e aquilo que os governantes decidem. Em alguns casos mantêm até uma linguagem igual àquela que se usava há 40 anos - ainda esta semana uma secção local de um partido, no caso do PS, mas podia ser outro qualquer, distribuiu um folheto onde se congratula porque uma autarquia por si presidida "presenteou" uma determinada freguesia com uma biblioteca. "Presenteou"? Há 40 anos não se escreveria doutro modo!
Os governos dão e os povos acham que eles podem dar mais. E ameaça-se com contestação porque os governos estão a tirar o que tinham dado. É neste logro do dar e do tirar que temos passado as últimas décadas. Foi necessário chegar-se a 2010 e à respectiva crise para que se estabelecesse uma relação entre a coluna do deve e a coluna do haver na nossa concepção do Estado. Mas trata-se ainda duma relação ténue e sobretudo coluna alguma relaciona por enquanto as decisões de cada um e a situação do país. E contudo essa relação tem de ser estabelecida, pois, ao contrário do que sucedia há 40 anos, os portugueses têm hoje acesso a informação mais do que suficiente para terem consciência de que usufruem de um padrão de vida muito superior ao daqueles que os antecederam mas que sabem estar muito acima das suas posses reais. Sabem também que os seus filhos irão viver pior, quanto mais não seja porque vão ter de pagar por largos anos aquilo de que os pais usufruíram. Os filhos e os netos de quem teve emprego blindado para toda a vida, mesmo que não trabalhasse nada, são agora eternos trabalhadores a recibos verdes, sem direito a subsídio de desemprego e, para cúmulo, obrigados a descontar para uma segurança social cujos recursos não são suficientes para cobrir todo o pacote de garantismos que se consideraram inerentes à democracia.
Desta traição geracional não é apenas responsável quem nos governou e governa nos últimos 40 anos, mas todo um povo que se desresponsabilizou na ditadura e na democracia de cada vez que fez de conta que acreditava que os governantes davam e que achou que aquilo a que chamavam os seus direitos seria pago por quem calhasse, quando calhasse e na forma que calhasse. Mas as facturas, sobretudo as dos pobres, caem sempre na respectiva caixa do correio. E quando o destinatário já não reside lá fica ao cuidado dos seus filhos.
Os bons velhos tempos nunca existiram. Tal como nunca existiu o bom jornalismo de outrora, que, na verdade, se traduzia nuns textos presunçosos e dogmáticos. Tal como nunca existiram as pessoas cheias de saúde do antigamente, que, na realidade, apenas tinham muita saúde porque morriam cedo. O que existe é o tempo que nos coube e em que, como de costume, preferimos efabular sobre o passado a interrogarmo-nos sobre que presente estamos a construir. Ensaísta
1 comentário:
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ir aqui e carregar no botão para ver em gráfico. Um bem haja
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