DN Madeira 10.01.11
[este texto respeita o novo acordo ortográfico]
«Sabem de país mais desconhecido que um coração?». Foi o que me apeteceu perguntar estes dias ao assistir num dos telejornais a uma notícia bizarra, com a qual até os jornalistas que assinavam e apresentavam a peça gozavam. Uma mulher de Taiwan, secretária de profissão, aí entre os trinta e os quarenta anos, tinha protagonizado um casamento com ela própria: com direito a vestido branco, aliança, transporte em limousine, jantar para centenas de convidados e fogo de artifício. Não sei como é que tal possa ser, pois não imagino que exista em alguma parte um enquadramento jurídico para iniciativas do género. Penso que tudo se terá ficado por uma celebração simbólica em que aquela mulher, encenando um matrimónio, jurava fidelidade a si mesma.
Ao receber uma notícia destas podemo-nos rir, alarmar, enfurecer, encolher os ombros, interrogarmo-nos se tudo não passa de uma farsa desenhada para os tabloides e para a TV nas tréguas natalícias onde, ao que parece (sic), as notícias sérias não abundam, questionar a saúde psicológica daquela mulher e dos que a rodeiam, etc, etc. Mas, a existir um pingo de verdade nesta insólita história, somos remetidos para um nível mais profundo de compreensão: temos de tentar perceber, por de trás do ato, ainda que nos pareça destituído de qualquer racionalidade, o que conduz ou pode conduzir um Ser Humano a uma decisão destas. Sem querer ficcionar sobre uma história seguramente já saturada de ficção (e de óbvias, penosíssimas ilusões), há uma causa que ocorre imediata: uma grande, irresolúvel e mal vivida solidão.
A cultura contemporânea deixou de nos preparar para a solidão. Na maior parte das vezes é uma aprendizagem que temos de fazer em cima dos próprios acontecimentos, ou na sua dolorosa ressaca, e de forma muito desacompanhada. É como se a solidão fosse uma surpresa absolutamente improvável na nossa experiência humana e não, como ao contrário é, um modo de existência completamente comum. Há uma frase de Truman Capote, que há anos passei para um dos meus cadernos: «Todos estamos sozinhos, debaixo dos céus, com aquilo que amamos». Mas esquecemos isso. Esquecemos que todos os dias, mesmo numa vida afetivamente integrada e febrilmente ativa, a solidão nos visita. Somos sós connosco próprios e em companhia. Fomos sós em criança, fomos assim na transbordante juventude e nas décadas da vida adulta, e seremos assim na velhice. A amizade e o amor são formas de condividir, diminuir, dar serenidade ou potenciar criativamente a solidão, mas o assobio ininterrupto da solidão continuará a fazer-se ouvir no abraço redondo dos amantes ou na ronda magnífica dos amigos. Recordar-se disso é humanizar o nosso olhar e o nosso juízo sobre a realidade.
Também por este motivo, gostei muito de reencontrar no número de janeiro da revista "Ler" as palavras lúcidas da escritora brasileira Nélida Piñon, opondo o alicerçante desejo de recolhimento à atração atual por tudo o que é dispersivo: «a solidão buscada é o lugar onde melhor aprendi a encontrar-me».
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