21 dezembro 2016

09 dezembro 2016

Da Mariquinhas.


Miguel Tamen | Observador | 9.12.16

"Há mais de sessenta anos que dezenas de fadistas contumazes lamentam a desaparição da casa da Mariquinhas. Fizeram-no de muitos modos: recomendaram que se afogasse as dores da mudança em licor de ginja; imaginaram a proprietária numa situação de obesidade; e cantaram a desaparição das pessoas que tinham cantado a desaparição da casa. A alteração mais ínfima fez-lhes sempre lembrar o fim do mundo, e sugeriu-lhes frequentemente que a actividade humana é vã. As voltas do conhecido fado-Midas transformam tudo o que tocam em ocasião de choradeira.

À Mariquinhas original são porém alheios esses modos de lamento. Continua a ser a mais filosófica de todas as versões. A senhora do título é uma Carmen afadigada, “altiva como as rainhas.” É verdade que mora numa rua bizarra, mas apenas porque era preciso encontrar uma rima para “guitarra.” No demais tem uma casa “muito mal mobilada”, onde se podem ver jarras sobre colunas e “quadros de gosto magano.” Nada que não se possa encontrar ainda em residências de secretários de estado, de professores universitários, e de vendedores ambulantes. O primeiro e o maior fadista que cantou a casa da Mariquinhas construiu com as suas mãos uma réplica da referida casa, hoje no Museu do Fado; parece-se mais com uma casa de bonecas vitoriana do que com o símbolo de um mundo desaparecido.

Na casa da Mariquinhas original pratica-se a prostituição com uma certa alegria. A heroína “é doida pelas cantigas.” É-nos informado que “vive com muitas amigas” mas a frase não quer provavelmente dizer isso. A letra consiste numa série de décimas que à primeira vista parecem monótonas. Há versos que dão a impressão de lapsos poéticos deliberados. São todavia os grandes momentos do fado: o dístico “se canta o fado à guitarra / de comovida até chora” contém uma observação profunda sobre a origem dos nossos desgostos, e mesmo da arte. Quanto ao melhor dístico de todos, chega a confortar os ignorantes, porque sugere um erro literário que nem nós próprios cometeríamos: “Limpa as mobílias com óleo / De amêndoa doce e mesquinhas.” Os eruditos arrepiam-se; mas o fadista sublinha-o com acinte e com deleite. O seu instinto era melhor, e era seguro: nunca ninguém voltou a pronunciar ‘falo’, ‘sala’ ou ‘coluna’ como ele.

Para as grandes cenas de lamentação gostamos de imaginar cenários condizentes: os últimos dias de Pompeia, entrevistas de vida de artistas idosos, e, no fado, o quadro do Pintor Consagrado. Ora na casa da Mariquinhas não há cenários desses. O ambiente é de domesticidade calma. As receitas são guardadas no cofre-forte; as vizinhas não sabem o que se passa lá dentro; há problemas com a conta do gás; exerce-se uma profissão; e, claro está, a mobília é limpa com óleo de amêndoas doces. A casa da Mariquinhas representa o triunfo da sociedade civil."

02 dezembro 2016

Ainda sobre o (In)Fidel Castro.

O Colapso da Decência
por Nuno Melo | JN, 01.12.16

A aprovação do voto de pesar pela morte de Fidel Castro na Assembleia da República, como alguém que "consagrou a vida aos ideais do progresso social e da paz", significou o derradeiro triunfo do ditador, sobre os valores de referência do regime democrático.
A extrema-esquerda que contesta a legitimidade da eleição de Donald Trump nos EUA teve sucesso na homenagem a um déspota cubano que, como é sabido, nunca contou um voto nas urnas, ao mesmo tempo que, na caricatura do absurdo, se manifestou sentada no hemiciclo, sem respeito nem educação, contra a visita amiga do rei legítimo de Espanha, acusado de nunca ter sido submetido a sufrágio.
Agiu a propósito, com a mesma facilidade com que grita "liberdade" de cravo ao peito em cada dia 25 de Abril, mas concretizou o 11 de Março e lutou para que o 25 de Novembro nunca visse a luz do dia.
Conseguiu para o tirano do Caribe o que negou por ocasião da morte de José Hermano Saraiva, perigoso doutrinador do Estado Novo nos "Horizontes da memória" da RTP, António Champallimaud, pecaminoso porque criou riqueza e empregos em Portugal, Jaime Neves, que do lado de Ramalho Eanes teve o topete de ajudar a consolidar a democracia nacional, ou Shimon Peres que, azar nítido, foi prémio Nobel da Paz a par de Yasser Arafat, mas era judeu.
Tratou-se também da mesmíssima extrema-esquerda que rejeitou o voto de congratulação pela libertação de Ingrid Bettencourt, sequestrada pelas FARC na Colômbia, sob argumento de que os terroristas é que estavam do "lado certo" da história.
Infelizmente, no centro-direita, não faltou quem tenha ido na conversa. Esqueceram-se, talvez, de que os "ideais do progresso social e da paz" descobertos no finado Fidel Castro podem ser medidos pelo número de opositores mortos ou desaparecidos, de partidos políticos que nunca puderam nascer, de cubanos impedidos de circular, de se expressarem livremente ou de se manifestarem, dos "balseros" afogados em condições miseráveis na esperança de se livrarem do jugo e da absoluta proibição da liberdade de Imprensa.
Em cada fotografia tirada ao lado de Fidel Castro, por líderes ocidentais fascinados pela ideia da moldura a ornamentar os armários lá de casa, o ditador foi ganhando anos de vida política, contados pela longevidade de um regime que Che Guevara ilustrou como poucos na ONU, em 11 de dezembro de 1964: Fuzilamentos? Sim. Fuzilamos e continuaremos fuzilando.
A Assembleia da República não se limitou a homenagear um tirano. Silenciou a justiça devida a cada uma das vítimas.