17 dezembro 2014

De quem veio de quem já não está cá.

Quando se perde de quem se veio, vai embora muita coisa. Não faria tanto frio se não fosse assim, e o espaço que fica, cheio de nada, aperta como se a empurrar as paredes de tudo o resto.
Silêncio. De quem veio de quem já não está cá, de quem ficou metade, de quem se junta na hora solene. O Senhor faz-se Corpo e Sangue. Vem a fila de gente, olhos rasos, coração pequeno, abraço pronto, prontos que estão a fazer companhia. Mas sobra frio. Sempre o frio. Fica depois, quando todos partem, junto ao pinho a metade desmontada - nunca mais vai servir senhor que possa morrer.


19 novembro 2014

13 outubro 2014

Vai-se andando.

Moda LX '14 | Nuno Gama | Pedro Henriques
fotografia de Rui Vasco
A propósito desta imagem ouvi a pergunta - Quando este senhor é um ícone da moda e o Secret Story tem o máximo das audiências, para onde vamos? Que país é o nosso?

Respondo que é um país vítima da sua própria tradição política e de participação na vida pública, em que se insiste em falar do povo como uma massa indistinta que de alguma maneira é inferior à classe dirigente, ou, pensante.

Essa postura arrogante, infinitamente burguesa, resulta numa incapacidade de criar uma cultura de intervenção cívica com um papel forte das comunidades e estruturas locais – que levaria a um ciclo virtuoso de educação e “levantamento” das comunidades.

Criou-se por isso uma tradição política, um hábito, uma forma de vida, que vive em função do que se passa e do que se quer que se passe, apenas no parlamento. E se não é quem manda a puxar a carroça, a carroça não anda.



Não há, no cidadão comum, um hábito de fazer política, no sentido lato e, talvez, original do termo, um hábito de perguntar "como é que vamos organizar a nossa comunidade?".

Vai-se andando, porque sim. E "não se pode nunca apenas ir andando."



Where the fun ain't got no end.

06 outubro 2014

A D S U M

ao Nuno



Não fugir. Suster o peso da hora

Sem palavras minhas e sem os sonhos,

Fáceis, e sem as outras falsidades.

Numa espécie de morte mais terrível

Ser de mim todo despojado, ser

Abandonado aos pés como um vestido.

Sem pressa atravessar a asfixia.

Não vergar. Suster o peso da hora

Até soltar sua canção intacta.



Cristovam Pavia

03 outubro 2014

Dorme meu filho.

(de uma fotografia de meu Pai comigo, pequeno de meses, ao colo)

Vamos através do incêncio
Mas não temas, meu filho.
Podes dormir nos meus braços frescos e fortes,
Embala-te a cadência dos meus passos.

Vamos através do incêncio
E sonhas.
Detrás das tuas pálpebras a tarde
Beija e doira as folhas dos sobreiros.

E quase me esqueço
Deste puro fogo,
P'ra te dar frescura.
Arde o meu sangue calmo.
E o meu suor, arde.

E, devagar, 
Vamos através do incêndio.

Dorme, meu filho.


Cristovam Pavia

Das fogueiras e das bruxas.

Quem quer apagar a memória?
Rui Ramos | Observador | 02.10.2014

"Hoje, por vontade dos deputados do PCP e do BE, a Assembleia da República deveria ter imposto a Portugal uma história alternativa, onde Carmona, Craveiro Lopes e Américo Tomás nunca teriam sido presidentes da república. A ambição parlamentar de corrigir o passado seria risível, se também não fosse contraditória. Estes deputados representam correntes de opinião em geral muito zelosas da memória do “fascismo”. Aparentemente, os mesmos que não nos deixam esquecer que a PIDE existiu, não querem que se saiba que o presidente Carmona também existiu. Reparem: a exposição de bustos presidenciais no Palácio de São Bento, causa desta última erupção de revisionismo histórico “anti-fascista”, não representa uma qualquer homenagem, mas apenas a sequência dos titulares da presidência da república, tal como sucede no museu do Palácio de Belém. Porque é que os presidentes do Estado Novo teriam de ser expurgados da memória histórica?

O Estado Novo foi uma ditadura, sujeitou a imprensa à censura, falsificou eleições, e prendeu, torturou, e matou oposicionistas. Não foi, porém, o único regime português que procedeu assim. A esquerda republicana, quando no poder entre 1910 e 1926, também censurou, também organizou fraudes eleitorais, também prendeu, também torturou e também matou — mas ninguém se indignou com os bustos dos seus presidentes, eleitos aliás da maneira menos democrática que se pode imaginar. É verdade que o salazarismo praticou as suas atrocidades por mais tempo e mais recentemente. Mas não há nenhuma força política neste parlamento que aspire a restaurar esse regime – como nunca houve depois de 1974. A direita democrática portuguesa jamais deixou dúvidas sobre o seu repúdio da ditadura e a sua identificação com a democracia pluralista, ao contrário da extrema-esquerda, sempre fiel a Estaline, a Trotsky e aos pequenos déspotas que aqui e ali sobrevivem da bancarrota comunista. Por que razão havíamos de ter medo de um busto de Carmona numa galeria de presidentes?

Além da nota sobre a duplicidade de critérios, a “crise dos bustos” justifica ainda outra observação: a história é sempre mais complexa do que indignações de bolso, como as daqueles que ontem compararam Carmona e Craveiro Lopes a Hitler, permitem conceber. Salazar, segundo confessou a Franco Nogueira, nunca sentiu que Carmona, republicano e maçon, estivesse totalmente do seu lado, e o nome do presidente andou, aliás, enrolado nas manobras anti-salazaristas do pós-guerra. Craveiro Lopes conspirou mesmo contra Salazar. E durante a “abrilada” de 1961, os conjurados ainda admitiram poder contar com Tomás para alterar o rumo da governação salazarista.

Não, não estou a dizer que foram “antifascistas”. O Estado Novo era uma ditadura, e uma ditadura frequentemente hedionda, mas muita gente serviu o regime ou conformou-se com ele, não porque se regozijasse com as suas brutalidades, mas porque era o que existia e não lhe via alternativa, ou até porque esperava que evoluísse para outro regime mais aberto e pluralista. Em 1968-1969, muitos dispuseram-se a confiar em Marcelo Caetano, apesar da censura, da PIDE e da guerra em África, porque se convenceram de que só ele poderia acabar com tudo isso sem precipitar o país noutra ditadura, como a oposição não parecia capaz de garantir. E houve quem, como Francisco Sá Carneiro, rompesse com Caetano quando compreendeu que não seria assim. Dizer isto não é “branqueamento”. É apenas história. E quem não percebe isso, não percebe nada, mas é verdade que os caçadores de bruxas nunca precisaram de perceber nada. Basta-lhes atear as fogueiras.

Um país não pode ter só a memória que convém a alguns. Um país não é um partido, nem um clube exclusivista. A história de Portugal é Nuno Álvares Pereira, mas também é Leonor Teles. É Salazar e é Cunhal. É Bernardino Machado e é Carmona. É toda a gente, os que achamos bons e os que achamos maus. Nem todos somos da mesma opinião, e nem sempre teremos a mesma opinião. Basta pensar no caso do marquês de Pombal. Morreu com fama de ser um dos mais corruptos e sanguinários tiranos da história de Portugal. Hoje, tem a mais imponente de todas as estátuas no meio de Lisboa.

A propósito de Pombal, aliás, houve em 1834 um episódio parecido com o dos bustos presidenciais. O arquitecto que então preparou a câmara dos deputados em São Bento resolveu decorar as paredes com nomes de figuras históricas, em letras douradas. Entre esses nomes, pôs o de Pombal. Grande burburinho, como agora. Ainda por cima, Pombal era antepassado do general Saldanha, então na oposição. Não houve conselho parlamentar, mas conselho de ministros. Decidiu-se apagar o nome com uma aguada. Mas, como conta Oliveira Martins, nos dias chuvosos, distinguia-se perfeitamente o nome de Pombal. A história vem sempre ao de cima. Às vezes, basta um pouco de humidade."



02 outubro 2014

A Nossa Senhora.


Voltarei à penumbra fresca da igreja
Ancestral, silenciosíssima e vazia,
Aonde está pousado o teu altar:
Doce mãe Maria...
E ajoelhar-me-ei,
E fecharei os olhos sem pensar...
- Que a minha oração nada mais seja:
Basta descansar.

Cristovam Pavia


Monsanto Rasteirinho.


01 outubro 2014

O que alma é no corpo.



Os cristãos não se destinguem dos demais homens, nem pela terra, nem pela língua, nem pelos costumes.
Nem, em parte alguma, habitam cidades peculiares, nem usam alguma língua distinta, nem vivem uma vida de natureza singular. nem uma doutrina desta natureza deve a sua descoberta à invenção ou conjectura de homens de irrequieto, nem defendem, como alguns, uma doutrina humana. Habitando cidades Gregas e Bárbaras, conforme coube em sorte a cada um, e seguindo os usos e costumes das regiões, no vestuário, no regime alimentar e no resto da vida, revelam unanimemente uma maravilhosa e paradoxal constituição no seu regime de vida político-social.
Habitam pátrias próprias, mas como peregrinos: participam de tudo, como cidadãos, e tudo sofrem como estrangeiros. Toda a terra estrangeira é para eles pátria e toda a pátria é uma terra estrangeira. Casam como todos e geram filhos, mas não abandonam à violência os neonatos. Servem-se da mesma mesa, mas não do mesmo leito. Encontram-se na carne, mas não vivem segundo a carne. Moram na terra e são regidos pelo céu. Obedecem às leis estabelecidas e superam as leis com as próprias vidas.
Amam todos e por todos são perseguidos. Não são reconhecidos, mas são condenados à morte; são condenados à morte e ganham a vida. São pobres, mas enriquecem muita gente; de tudo carecem, mas em tudo abundam. São desonrados, e nas desonras são glorificados; injuriados, são também justificados.
Insultados, bendizem; ultrajados, prestam as devidas honras. Fazendo o bem, são punidos como maus; fustigados, alegram-se como se recebessem a vida. São hostilizados pelos Judeus como estrangeiros; são perseguidos pelos Gregos, e os que os odeiam não sabem dizer a causa do ódio.
Numa palavra, o que a alma é no corpo, isso são os cristãos no mundo.

Carta a Diogneto
séc.II d.c.


Precisamos de Santos.

Precisamos de Santos mesmo sem véu ou batina.
Precisamos de Santos de calças de ganga ou ténis.
Precisamos de Santos que vão ao cinema, oiçam música e saiam com os amigos.
Precisamos de Santos modernos, Santos do séc.XXI, e com uma espiritualidade para o nosso tempo.
Precisamos de Santos comprometidos com os pobres e com as mudanças sociais que são necessárias.
Precisamos de Santos que vivam no mundo, que se santifiquem e que não tenham medo de viver no mundo.
Precisamos de Santos que bebam Coca-Cola, comam cachorros, naveguem na internet e oiçam música.
Precisamos de Santos que amem apaixonadamente a Eucaristia e que achem natural tomar uma bebida ou comer uma pizza com os amigos.
Precisamos de Santos que gostem de cinema, de teatro, de música, de dança e de desporto.
Precisamos de Santos sociáveis, abertos, normais, amigos, alegres e que sejam bons companheiros.
Precisamos de Santos que saibam saborear as coisas puras e boas do mundo, mas que não sejam mundanos,

São João Paulo II


22 setembro 2014

dos pesos e medidas.


"Conservadorismo: quando alguém é acusado de sofrer da maleita, não se pretende afirmar que a infeliz criatura adere a um conjunto válido e racional de ideias ou valores que definem uma ideologia política. Ao conservador não se aplica o mesmo tipo de tolerância ética ou epistemológica que se concede ao liberal, ao socialista e até, Deus seja louvado, ao comunista impenitente."

in Conservadorismo
João Pereira Coutinho


16 setembro 2014

da importância das histórias.

Norman Rockwell

também é assim que se aprende a diferença entre o que é e o que pode ser, o que se quer guardar e o que se quer mudar, o que é para defender e o que é para combater. também é assim que se descobre o que há para além da matéria e que se imagina e inventa. também é assim que se treina o coração e a vontade. também é assim que se aprende a ter ideais. também é assim que se escolhem bandeiras. também é assim que se aprende a querer.

e a palavra é sempre com "h". é fácil esquecer que a História é feita com a vida das pessoas e que da vida das pessoas se escrevem histórias. 

02 setembro 2014

Reaccionário é outra coisa.


"Não existe uma distinção válida entre "mudar para trás" e "mudar para a frente". Mudança é mudança; a história não se retrai nem se repete e toda a mudança se afasta do status quo. À medida que o tempo passa, o ideal do reaccionário distancia-se cada vez mais de qualquer sociedade real que tenha existido no passado. O passado é romantizado e, no fim, o reaccionário acaba por defender o regresso a uma Idade de Ouro idealizada que nunca de facto existiu. Ele torna-se indistinguível de outros radicais e, normalmente, exibe todas as características singulares da psicologia radical."

Samuel P. Huntington
in Conservadorismo, João Pereira Coutinho


20 agosto 2014

dos vulcões islandeses.

Um chama-se Eyjafjallajokull e o outro Bardarbunga.
Multi-etnicidades na geologia islandesa.

18 agosto 2014

Agora, para sempre.




Oh Captain! My Captain!

O Captain! my Captain! our fearful trip is done,
The ship has weather’d every rack, the prize we sought is won,
The port is near, the bells I hear, the people all exulting,
While follow eyes the steady keel, the vessel grim and daring;
                         But O heart! heart! heart!
                            O the bleeding drops of red,
                               Where on the deck my Captain lies,
                                  Fallen cold and dead.

O Captain! my Captain! rise up and hear the bells;
Rise up—for you the flag is flung—for you the bugle trills,
For you bouquets and ribbon’d wreaths—for you the shores a-crowding,
For you they call, the swaying mass, their eager faces turning;
                         Here Captain! dear father!
                            This arm beneath your head!
                               It is some dream that on the deck,
                                 You’ve fallen cold and dead.

My Captain does not answer, his lips are pale and still,
My father does not feel my arm, he has no pulse nor will,
The ship is anchor’d safe and sound, its voyage closed and done,
From fearful trip the victor ship comes in with object won;
                         Exult O shores, and ring O bells!
                            But I with mournful tread,
                               Walk the deck my Captain lies,
                                  Fallen cold and dead.

Walt Whitman


25 junho 2014

Sines, abreojolhos!

"De Obama, mais uma novidade: o presidente americano vai abrir a porta à exportação de petróleo não refinado - suspensa há quatro décadas, diz o Wall Street Journal. E muita coisa no mundo pode mudar com isso."

in Observador

08 maio 2014

Aritmética das famílias numerosas

"As vantagens das famílias numerosas são que as alegrias se multiplicam e as tristezas dividem-se."

Fernando Castro (1952-2014)

Fundador da APFN – Associação Portuguesa das Famílias Numerosas

23 abril 2014

Um ano depois, continuam a jogar tudo como São Jorge.

Happy Saint George's Day!


Depois há umas lendas sobre uns dragões.

Síria, Nigéria, Líbano, Egipto, Paquistão
Nestes países ser cristão é jogar tudo como São Jorge.

09 abril 2014

Geek and then some.

A Fantastically Detailed Geological History for Game of Thrones
http://io9.com/a-fantastically-detailed-geological-history-for-game-of-1561092800?utm_campaign=socialflow_io9_facebook&utm_source=io9_facebook&utm_medium=socialflow


31 março 2014

Marvel Medieval...

Os Avengers Medievais, ou, os Nove da Fama.
Nove heróis que foram tema frequente da literatura e artes medievais, sendo parte do imaginário colectivo popular. No seu conjunto, os Nove eram a personificação perfeita dos ideais da Cavalaria, fazendo as delícias das leituras juvenis. Estudar as vidas dos Nove faria de ti um bom Cavaleiro. Pertencer ao Clube de Fãs dos Nove, era a ambição de qualquer escudeiro!

Senhoras e senhores, os nove: Heitor de Tróia, Alexandre o Grande, Júlio César, Josué, Rei David, Judas Macabeu, Rei Artur, Carlos Magno, Godofredo de Bulhão.



Rei Artur, Carlos Magno, Godofredo de Bulhão

Alexandre o Grande, Heitor de Tróia, Júlio César

Judas Macabeu, Rei David, Josué


24 março 2014

Ser Pai?

É um Mistério. É eternidade no quotidiano corriqueiro e tantas vezes desordenado. É ver nascer cá dentro a vontade de chegar um dia a ser mesmo Pai. É a alegria de isso te fazer ser melhor Filho. É sentires-te portador de um testemunho, de um tesouro que passa agora a estar ao teu cuidado. É crescer, finalmente.

É atascares-te de biberons e desoras de sono, e sacos e fraldas e ovos e rodinhas. É tentar vestir roupas minúsculas com dois milhões de molinhas impossíveis - quem é que inventou essa cena?! É ficar de cabeça em papa, porque o teu filho não come a papa. É nunca mais sair de casa, simplesmente. E por causa disso, ser enfim livre. Como nunca antes foste. Porque se cumpre a tua própria natureza.

É vê-los reconhecer-nos cada vez mais e rirem-se porque "chegou o meu paizão!"- não há coisa mais energizante que isso, salvo talvez, o sorriso enternecido da mulher da tua vida. É dizeres a ti mesmo, com a força daqueles momentos realmente vitais: "tu não o vais deixar cair nunca".

É ser Homem. É morar ainda mais no coração da tua mulher e, por isso, ser salvo.


Irmão Sol.

Miradouro da Graça | fotografia de José António Silva


12 março 2014

Uma Bombarda no Coração.

Manuel Fúria
Cantautor
SNPC | 10.03.14


Esta semana nos Colégios da Companhia de Jesus em Portugal (Instituto Nun'Álvres em Santo Tirso, Colégio Apostólico da Imaculada Conceição em Coimbra e São João de Brito em Lisboa) celebra-se a Semana Inaciana, um período de actividades em honra e memória do homem que inventou os Jesuítas, o basco Santo Inácio de Loyola. Eu, que fui aluno do primeiro Colégio citado, sei aquilo que esta semana representa e pareceu-me que, nesta coincidência de datas (do início da Semana Inaciana e do início de uma série de textos para o Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura), deveria inaugurar a coisa com um texto em acção de graças pela vida do homem em relação ao qual a minha fé tanto, tanto, tanto deve.
Acção de Graças significa dizer «obrigado», agradecer, e ainda, mantendo este modo pleunástico, mostrar gratidão a Deus. «Contigo sou sempre agradecido» canta a banda Xungaria no Céu numa das suas canções e este parece ser o lema justo para tatuar no braço de um cristão: a infinita e misteriosa bondade que Deus tem por nós, nunca nos largando da mão e actuando segundo Sua infinita sabedoria de um modo que não é alheio à claridade dos nossos olhos vesgos, mas refém dela.
A maravilhosa acção que gostaria de entregar ao Senhor em gratidão, e aquela que mais gostaria de sublinhar, é o momento fundador que transforma para sempre a vida do homem cuja vida e obra, nos próximos dias, é celebrada de modo especial. Aquilo a que sou grato é nada mais nada menos que estilhaços de pólvora, um grave ferimento de guerra, para ser mais preciso, uma «bombarda».
Logo nas primeiras linhas da Autobiografia de Santo Inácio de Loyola podemos ler que «Até aos vinte e seis anos de idade, foi homem dado às vaidades do mundo e deleitava-se sobretudo no exercício de armas, com um grande e vão desejo de honra (...)», creio não ser necessário traduzir para os dias de hoje aquilo que estes atributos significarão. Poder-se-ia substituir «exercício de armas» por «corridas de automóveis», «jogos de futebol» ou outra qualquer actividade mais própria da vaidade masculina, mas aquilo que realmente interessa destas linhas é que este homem, Iñigo López (a versão latinizada "Inácio" surgiria mais tarde após a conversão), era alguém interessado no reconhecimento das coisas terrenas, alheio à verdadeira e eterna glória. Nada de muito original, portanto.
Mais à frente nesta mesma autobiografia podemos ler uma sucinta descrição da célebre Batalha de Pamplona, na qual Iñigo é ferido: «E depois do assalto demorar bom tempo, uma bombarda acertou-lhe numa perna e partiu-a toda e como uma bala passou entre as pernas (...)»; o resto da história já nós sabemos ou deveríamos saber, da sua convalescença e como esse período de fraqueza o mudou para sempre, alterando para sempre também as vidas de cada um daqueles que têm o privilégio de conviver com ele através do lastro que a sua obra deixou e deixa, todos os dias, nas inúmeras obras da Companhia de Jesus. Diz-se também que o guerreiro basco, neste período acamado, imaginava-se conquistando de amores a dama dos seus sonhos e do gozo que isso lhe proporcionava. Um gozo, porém, de curta duração, não comparável a um outro que permanecia incólume a tristezas e outros empecilhos dessa natureza, o de se imaginar fazendo coisas semelhantes às dos santos cujas façanhas tanto o fascinavam (os únicos dois volumes disponíveis para leitura no Castelo onde se encontrava em convalescença eram uma Vida de Jesus e a Legenda Áurea, um compêndio de narrativas hagiográficas muito popular na Idade Média). Foi aí, nesse nervo, que Deus actuou, incisivo e demolidor como a tal bombarda de Pamplona, alterando por Seu amor a vida deste homem e, consequentemente, as vidas de todos de todos aqueles que convivem directamente com o legado dos Jesuítas espalhados pelo mundo, espalhados entre a terra e o Céu.
Obrigado Senhor pela bombarda que estilhaçou o coração de Santo Inácio, obrigado pelas bombardas que todos os dias colocas diante dos nossos olhos vesgos. Obrigado por nos fazeres cair em fraqueza para que retornemos a Ti, exactamente como na narrativa desse filho que não era suposto regressar. Obrigado por nos ofereceres morada, mesmo quando construímos casa nos lugares errados. Que esta divina inspiração do Espírito tome conta dos nossos corações é aquilo que peço, recordando os famosos versículos de Marcos (8,36) que, anos mais tarde, já transformado, guardando essa «bombarda» no coração, Inácio diz a um outro futuro santo, Francisco Xavier: «De que vale a um homem ganhar o mundo inteiro se perder sua alma».


11 março 2014

O Marquês que fez.

Razões de uma Homenagem
Câmara Municipal de Alcochete | 15 de Janeiro de 1967

NESTE DIA 15 DE JANEIRO DE 1967, O CONCELHO DE ALCOCHETE VEM RENDER A SUA HOMENAGEM À MEMÓRIA VENERANDA DE D. ANTÓNIO LUÍS PEREIRA COUTINHO, 5º. MARQUÊS DE SOYDOS, BENEMÉRITO DESTA VILA E GRANDE PALADINO DA RESTAURAÇÃO DAS LIBERDADES E AUTONOMIAS MUNICIPAIS.

Esquartelado. 1º. de Coutinho, 2º. partido de
Netto e Patto, 3º. partido de Nogueira e Pimentel
4º. de Coutinho, escudete sobre o todo de Pereira
Dados Biográficos.

D. António Luís Pereira Coutinho Pacheco Patto Nogueira de Novais Pimentel, 5º. Marquês de Soydos e Grande de Espanha, Marquês Parente, etc, nasceu no palácio de São Gonçalo, de sua Família, à Penha de França, em Lisboa, no dia 9 de Agosto de 1818, e faleceu no seu solar de Alcochete no dia 9 de Agosto de 1908, portanto, precisamente no dia em que completou 90 anos.
Foi filho primogénito do 4º Marquês de Soydos, D. António Xavier Pereira Coutinho Pacheco Patto Nogueira de Novais Pimentel, e da Marquesa D. Maria da Madre de Deus de Lemos Pereira de Lacerda.
Por sua avó paterna, D. Isabel Teresa Bárbara Vitória Netto Pereira Patto de Novais Pimentel, que nasceu em Alcochete na casa solar dos Álvares Pereiras (hoje edifício dos paços do concelho), e que foi, pelo seu casamento, segunda Marquesa de Soydos, trazia a representação das Casas dos Pereiras Pattos, dos Nettos de Novais e dos Álvares Pereiras, de Alcochete; e dos Novais Pimenteis, de Aldea-galega. Por esta mesma linha foi igualmente representante e senhor das Casas dos Monizes de Lusigano, de Alcochete, dos Nogueiras, de Santarém, e ainda dos Novais, do imortal navegador, Bartolomeu Dias e de seu neto Paulo Dias de Novais, 1º Capitão-General de Angola e fundador de São Paulo de Luanda.
Na sua mocidade frequentou o 5º. Marquês de Soydos as aulas dos frades de São Vicente de Fora e do Colégio dos Nobres. Mas os graves acontecimentos que então se desenrolavam no País obrigaram-no a abandonar os estudos.
Fiel, como seu pai, à causa da legitimidade dinástica, em Outubro de 1833 assentou praça no Regimento de Artilharia da Corte. Passou depois para o Regimento de Caçadores da Beira Baixa e depois para o Regimento de Caçadores 11. Não obstante os seus verdes anos, bateu-se bravamente em defesa dos seus ideais. Foi o seu batalhão que cobriu a retirada do exército legitimista de Santarém para Évora. De todos os oficiais convencionados em Evoramonte, foi ele o último a deixar este mundo.
Instaurado o regime constitucional, vendo-se acintosamente perseguido, emigrou para Itália, donde só muito mais tarde regressou.
Em 1884 casou com D. Maria José da Graça Telles de Melo de Almeida Portugal, filha de Francisco Telles de Melo de Brito Freire de Faro e Meneses e de Albuquerque e de D. Maria Ana Guilhermina Leite Pacheco de Antas da Cunha de Almeida Portugal.
Seu pai, então, deu-lhe casa. E, podendo optar por qualquer outro, foi no velho solar de sua Família, em Alcochete, que o 5º. Marquês de Soydos estabeleceu o seu lar e aqui lhe nasceram os filhos todos.


Corria o ano de 1852 quando faleceu o 4º. Marquês de Soydos. Como seu primogénito e imediato sucessor D. António Luís Pereira Coutinho Pacheco Patto Nogueira de Novais Pimentel assumiu então a administração da Casa de seus maiores.
Ora, não obstante os graves e irreparáveis danos ocasionados pelos sequestrados e confiscos de bens (inevitável e necessária consequência da inquebrantável fidelidade de seu pai e dele próprio à causa da legitimidade dinástica), a Casa de Soydos era ainda considerável.
Pertenciam-lhe importantes bens de raiz, tanto rústico como urbanos, situados nos concelhos de Santarém, Almeirim, Mafra, Torres Vedras, Oeiras, Sintra, Lisboa (freguesias do Campo Grande, Arroios, Charneca, Lumiar, Graça, e Santa Catarina), Alcochete, Aldeagalega, Moita, Coruche, e Montemor-o-Novo.
Mas o 5º. Marquês de Soydos não deixou a sua casa de Alcochete. Amava, sem dúvida, este formoso rincão ribatejano, a que se sentia vinculado por fortes e remotos laços de sangue.
Efectivamente, em 4 de Março de 1875, a Câmara Municipal de Alcochete, reunida em sessão ordinária em que se achavam presentes os vereadores Carolino José da Costa, Miguel Augusto Nunes e José Joaquim Martins, faltando, por motivo justificado, o vereador Manuel da Cruz, ouviu, proferida pelo respectivo presidente, Dr. José Estevão de Oliveira, a seguinte e muito importante comunicação: “Que tendo-lhe o Exmo. D. António Luís Pereira Coutinho, um dos mais abastados proprietários desta vila, aonde há muitos anos reside, manifestado, que muito desejando concorrer para o progresso moral e material desta Terra – sua Pátria adoptiva – digna a todos respeitos de partilhar dos melhoramentos de que é susceptível, e estando na mansa e pacífica posse de um terreno que ocupa uma área de 14,510 metros quadrados, contíguo ao largo do Rocio desta Vila tinha resolvido cedê-lo, de sua mui livre e expontânea vontade, a este município, com a cláusula, porém, de ser única e exclusivamente destinado a um passeio público. Apressava-se, portanto, a dar conhecimento à Câmara desta importante declaração, por estar bem persuadido de que a Vereação não deixaria de aceitar e agradecer, em nome dos seus munícipes, tão valiosa oferta”. A Câmara, proclamando o doador benemérito do Concelho, aceitou a generosa dádiva. Cumpridas todas as formalidades legais, em sessão de Junho desse mesmo 1875, conferia poderes ao seu vice-presidente, Carolino José da Costa, para outorgar na escritura de doação.
E assim, destacando-o de uma propriedade ancestral de sua Família, vinculada em morgado naquele longínquo ano de 1575, e da qual ele foi 13º. senhor, o 5º. Marquês de Soydos oferecia generosamente à Câmara de Alcochete o terreno onde se viria a construir o mais aprazível local da vila – o Rocio.
Mas o testemunho pleno, o maior, da sua acrisolada afeição por esta Terra, deu-o ele na mais grave crise que o concelho de Alcochete experimentou durante a sua existência de muitos séculos – a supressão da própria autonomia municipal.
Na verdadeira luta em que os alcochetanos se empenharam pela restauração das suas liberdades municipais, o 5º. Marquês de Soydos pôs ao serviço dessa causa tudo o que possuía: desde o bens de fortuna, até ao prestígio imenso da sua Casa, do seu nome, da sua própria pessoa, então havida como uma das mais veneráveis figuras da velha aristocracia de Portugal. Certamente, por sua directa influência, a esta sagrada causa da restauração do nosso concelho se devotou, e nela tão decisiva e preponderante influência exerceu, seu irmão mais novo, D. Miguel Pereira Coutinho.
Tudo isto, bem o compreenderam os alcochetanos desse tempo, quando, numa manifestação ímpar nos anais da nossa história concelhia, sem uma só defecção o esperaram no limite do concelho, abaixo do Convento de São Francisco, nesse inesquecível dia 30 de Janeiro de 1898, e em delirante triunfo o conduziram até Alcochete, com os documentos e títulos do arquivo camarário, que ele próprio, só, e aceitando unicamente a companhia do chefe da secretaria da Câmara, José Francisco Evangelista, fora buscar à sede do concelho vizinho.
Provedor da Misericórdia durante dezenas de anos, serviu com extremos de afecto e generosidade a veneranda Instituição que seus antepassados tanto se honraram de servir.
A sua humildade e modéstia, o haviam levado a renunciar ao uso dos próprios títulos, das honras e dignidades a que tinha pleno direito, também não permitiram que desta acção benemerente ficasse outra recordação ou registo que não fosse a memória dos homens. Menção escrita dela não há, que ele nunca o consentiu.
Mas perdura ainda, especialmente entre os mais humildes, a recordação da sua grande generosidade, da sua bondade sem limites.
No cemitério de Alcochete jazem, em campa rasa, os restos mortais deste Homem que, para além de todos os seus títulos, tem para nós, alcochetanos, o título excepcional de servidor ímpar de Alcochete.
Pareceu bem à actual vereação, e assim o deliberou em sua sessão de Dezembro de 1964, que esta sepultura ficasse perpetuamente confiada à guarda da Câmara Municipal, como entidade representativa da população do concelho e realizadora das suas aspirações e vontades.
Precedeu esta deliberação o assentimento da ilustre Família directamente interessada, mediante declaração dos seus mais directos representantes.

Sabe de certeza a Câmara, ao proceder assim, que tem consigo, ao menos em espírito, as gerações de alcochetanos de 1875 a 1898. Mas com ela estão também, sem dúvida, os alcochetanos de 1967, acompanhando-a no singelo preito de gratidão a quem, com total isenção e pleno desinteresse, foi dedicado amigo dos alcochetanos, especialmente dos mais humildes, e foi grande e generoso servidor do concelho de Alcochete.