31 março 2014

Marvel Medieval...

Os Avengers Medievais, ou, os Nove da Fama.
Nove heróis que foram tema frequente da literatura e artes medievais, sendo parte do imaginário colectivo popular. No seu conjunto, os Nove eram a personificação perfeita dos ideais da Cavalaria, fazendo as delícias das leituras juvenis. Estudar as vidas dos Nove faria de ti um bom Cavaleiro. Pertencer ao Clube de Fãs dos Nove, era a ambição de qualquer escudeiro!

Senhoras e senhores, os nove: Heitor de Tróia, Alexandre o Grande, Júlio César, Josué, Rei David, Judas Macabeu, Rei Artur, Carlos Magno, Godofredo de Bulhão.



Rei Artur, Carlos Magno, Godofredo de Bulhão

Alexandre o Grande, Heitor de Tróia, Júlio César

Judas Macabeu, Rei David, Josué


24 março 2014

Ser Pai?

É um Mistério. É eternidade no quotidiano corriqueiro e tantas vezes desordenado. É ver nascer cá dentro a vontade de chegar um dia a ser mesmo Pai. É a alegria de isso te fazer ser melhor Filho. É sentires-te portador de um testemunho, de um tesouro que passa agora a estar ao teu cuidado. É crescer, finalmente.

É atascares-te de biberons e desoras de sono, e sacos e fraldas e ovos e rodinhas. É tentar vestir roupas minúsculas com dois milhões de molinhas impossíveis - quem é que inventou essa cena?! É ficar de cabeça em papa, porque o teu filho não come a papa. É nunca mais sair de casa, simplesmente. E por causa disso, ser enfim livre. Como nunca antes foste. Porque se cumpre a tua própria natureza.

É vê-los reconhecer-nos cada vez mais e rirem-se porque "chegou o meu paizão!"- não há coisa mais energizante que isso, salvo talvez, o sorriso enternecido da mulher da tua vida. É dizeres a ti mesmo, com a força daqueles momentos realmente vitais: "tu não o vais deixar cair nunca".

É ser Homem. É morar ainda mais no coração da tua mulher e, por isso, ser salvo.


Irmão Sol.

Miradouro da Graça | fotografia de José António Silva


12 março 2014

Uma Bombarda no Coração.

Manuel Fúria
Cantautor
SNPC | 10.03.14


Esta semana nos Colégios da Companhia de Jesus em Portugal (Instituto Nun'Álvres em Santo Tirso, Colégio Apostólico da Imaculada Conceição em Coimbra e São João de Brito em Lisboa) celebra-se a Semana Inaciana, um período de actividades em honra e memória do homem que inventou os Jesuítas, o basco Santo Inácio de Loyola. Eu, que fui aluno do primeiro Colégio citado, sei aquilo que esta semana representa e pareceu-me que, nesta coincidência de datas (do início da Semana Inaciana e do início de uma série de textos para o Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura), deveria inaugurar a coisa com um texto em acção de graças pela vida do homem em relação ao qual a minha fé tanto, tanto, tanto deve.
Acção de Graças significa dizer «obrigado», agradecer, e ainda, mantendo este modo pleunástico, mostrar gratidão a Deus. «Contigo sou sempre agradecido» canta a banda Xungaria no Céu numa das suas canções e este parece ser o lema justo para tatuar no braço de um cristão: a infinita e misteriosa bondade que Deus tem por nós, nunca nos largando da mão e actuando segundo Sua infinita sabedoria de um modo que não é alheio à claridade dos nossos olhos vesgos, mas refém dela.
A maravilhosa acção que gostaria de entregar ao Senhor em gratidão, e aquela que mais gostaria de sublinhar, é o momento fundador que transforma para sempre a vida do homem cuja vida e obra, nos próximos dias, é celebrada de modo especial. Aquilo a que sou grato é nada mais nada menos que estilhaços de pólvora, um grave ferimento de guerra, para ser mais preciso, uma «bombarda».
Logo nas primeiras linhas da Autobiografia de Santo Inácio de Loyola podemos ler que «Até aos vinte e seis anos de idade, foi homem dado às vaidades do mundo e deleitava-se sobretudo no exercício de armas, com um grande e vão desejo de honra (...)», creio não ser necessário traduzir para os dias de hoje aquilo que estes atributos significarão. Poder-se-ia substituir «exercício de armas» por «corridas de automóveis», «jogos de futebol» ou outra qualquer actividade mais própria da vaidade masculina, mas aquilo que realmente interessa destas linhas é que este homem, Iñigo López (a versão latinizada "Inácio" surgiria mais tarde após a conversão), era alguém interessado no reconhecimento das coisas terrenas, alheio à verdadeira e eterna glória. Nada de muito original, portanto.
Mais à frente nesta mesma autobiografia podemos ler uma sucinta descrição da célebre Batalha de Pamplona, na qual Iñigo é ferido: «E depois do assalto demorar bom tempo, uma bombarda acertou-lhe numa perna e partiu-a toda e como uma bala passou entre as pernas (...)»; o resto da história já nós sabemos ou deveríamos saber, da sua convalescença e como esse período de fraqueza o mudou para sempre, alterando para sempre também as vidas de cada um daqueles que têm o privilégio de conviver com ele através do lastro que a sua obra deixou e deixa, todos os dias, nas inúmeras obras da Companhia de Jesus. Diz-se também que o guerreiro basco, neste período acamado, imaginava-se conquistando de amores a dama dos seus sonhos e do gozo que isso lhe proporcionava. Um gozo, porém, de curta duração, não comparável a um outro que permanecia incólume a tristezas e outros empecilhos dessa natureza, o de se imaginar fazendo coisas semelhantes às dos santos cujas façanhas tanto o fascinavam (os únicos dois volumes disponíveis para leitura no Castelo onde se encontrava em convalescença eram uma Vida de Jesus e a Legenda Áurea, um compêndio de narrativas hagiográficas muito popular na Idade Média). Foi aí, nesse nervo, que Deus actuou, incisivo e demolidor como a tal bombarda de Pamplona, alterando por Seu amor a vida deste homem e, consequentemente, as vidas de todos de todos aqueles que convivem directamente com o legado dos Jesuítas espalhados pelo mundo, espalhados entre a terra e o Céu.
Obrigado Senhor pela bombarda que estilhaçou o coração de Santo Inácio, obrigado pelas bombardas que todos os dias colocas diante dos nossos olhos vesgos. Obrigado por nos fazeres cair em fraqueza para que retornemos a Ti, exactamente como na narrativa desse filho que não era suposto regressar. Obrigado por nos ofereceres morada, mesmo quando construímos casa nos lugares errados. Que esta divina inspiração do Espírito tome conta dos nossos corações é aquilo que peço, recordando os famosos versículos de Marcos (8,36) que, anos mais tarde, já transformado, guardando essa «bombarda» no coração, Inácio diz a um outro futuro santo, Francisco Xavier: «De que vale a um homem ganhar o mundo inteiro se perder sua alma».


11 março 2014

O Marquês que fez.

Razões de uma Homenagem
Câmara Municipal de Alcochete | 15 de Janeiro de 1967

NESTE DIA 15 DE JANEIRO DE 1967, O CONCELHO DE ALCOCHETE VEM RENDER A SUA HOMENAGEM À MEMÓRIA VENERANDA DE D. ANTÓNIO LUÍS PEREIRA COUTINHO, 5º. MARQUÊS DE SOYDOS, BENEMÉRITO DESTA VILA E GRANDE PALADINO DA RESTAURAÇÃO DAS LIBERDADES E AUTONOMIAS MUNICIPAIS.

Esquartelado. 1º. de Coutinho, 2º. partido de
Netto e Patto, 3º. partido de Nogueira e Pimentel
4º. de Coutinho, escudete sobre o todo de Pereira
Dados Biográficos.

D. António Luís Pereira Coutinho Pacheco Patto Nogueira de Novais Pimentel, 5º. Marquês de Soydos e Grande de Espanha, Marquês Parente, etc, nasceu no palácio de São Gonçalo, de sua Família, à Penha de França, em Lisboa, no dia 9 de Agosto de 1818, e faleceu no seu solar de Alcochete no dia 9 de Agosto de 1908, portanto, precisamente no dia em que completou 90 anos.
Foi filho primogénito do 4º Marquês de Soydos, D. António Xavier Pereira Coutinho Pacheco Patto Nogueira de Novais Pimentel, e da Marquesa D. Maria da Madre de Deus de Lemos Pereira de Lacerda.
Por sua avó paterna, D. Isabel Teresa Bárbara Vitória Netto Pereira Patto de Novais Pimentel, que nasceu em Alcochete na casa solar dos Álvares Pereiras (hoje edifício dos paços do concelho), e que foi, pelo seu casamento, segunda Marquesa de Soydos, trazia a representação das Casas dos Pereiras Pattos, dos Nettos de Novais e dos Álvares Pereiras, de Alcochete; e dos Novais Pimenteis, de Aldea-galega. Por esta mesma linha foi igualmente representante e senhor das Casas dos Monizes de Lusigano, de Alcochete, dos Nogueiras, de Santarém, e ainda dos Novais, do imortal navegador, Bartolomeu Dias e de seu neto Paulo Dias de Novais, 1º Capitão-General de Angola e fundador de São Paulo de Luanda.
Na sua mocidade frequentou o 5º. Marquês de Soydos as aulas dos frades de São Vicente de Fora e do Colégio dos Nobres. Mas os graves acontecimentos que então se desenrolavam no País obrigaram-no a abandonar os estudos.
Fiel, como seu pai, à causa da legitimidade dinástica, em Outubro de 1833 assentou praça no Regimento de Artilharia da Corte. Passou depois para o Regimento de Caçadores da Beira Baixa e depois para o Regimento de Caçadores 11. Não obstante os seus verdes anos, bateu-se bravamente em defesa dos seus ideais. Foi o seu batalhão que cobriu a retirada do exército legitimista de Santarém para Évora. De todos os oficiais convencionados em Evoramonte, foi ele o último a deixar este mundo.
Instaurado o regime constitucional, vendo-se acintosamente perseguido, emigrou para Itália, donde só muito mais tarde regressou.
Em 1884 casou com D. Maria José da Graça Telles de Melo de Almeida Portugal, filha de Francisco Telles de Melo de Brito Freire de Faro e Meneses e de Albuquerque e de D. Maria Ana Guilhermina Leite Pacheco de Antas da Cunha de Almeida Portugal.
Seu pai, então, deu-lhe casa. E, podendo optar por qualquer outro, foi no velho solar de sua Família, em Alcochete, que o 5º. Marquês de Soydos estabeleceu o seu lar e aqui lhe nasceram os filhos todos.


Corria o ano de 1852 quando faleceu o 4º. Marquês de Soydos. Como seu primogénito e imediato sucessor D. António Luís Pereira Coutinho Pacheco Patto Nogueira de Novais Pimentel assumiu então a administração da Casa de seus maiores.
Ora, não obstante os graves e irreparáveis danos ocasionados pelos sequestrados e confiscos de bens (inevitável e necessária consequência da inquebrantável fidelidade de seu pai e dele próprio à causa da legitimidade dinástica), a Casa de Soydos era ainda considerável.
Pertenciam-lhe importantes bens de raiz, tanto rústico como urbanos, situados nos concelhos de Santarém, Almeirim, Mafra, Torres Vedras, Oeiras, Sintra, Lisboa (freguesias do Campo Grande, Arroios, Charneca, Lumiar, Graça, e Santa Catarina), Alcochete, Aldeagalega, Moita, Coruche, e Montemor-o-Novo.
Mas o 5º. Marquês de Soydos não deixou a sua casa de Alcochete. Amava, sem dúvida, este formoso rincão ribatejano, a que se sentia vinculado por fortes e remotos laços de sangue.
Efectivamente, em 4 de Março de 1875, a Câmara Municipal de Alcochete, reunida em sessão ordinária em que se achavam presentes os vereadores Carolino José da Costa, Miguel Augusto Nunes e José Joaquim Martins, faltando, por motivo justificado, o vereador Manuel da Cruz, ouviu, proferida pelo respectivo presidente, Dr. José Estevão de Oliveira, a seguinte e muito importante comunicação: “Que tendo-lhe o Exmo. D. António Luís Pereira Coutinho, um dos mais abastados proprietários desta vila, aonde há muitos anos reside, manifestado, que muito desejando concorrer para o progresso moral e material desta Terra – sua Pátria adoptiva – digna a todos respeitos de partilhar dos melhoramentos de que é susceptível, e estando na mansa e pacífica posse de um terreno que ocupa uma área de 14,510 metros quadrados, contíguo ao largo do Rocio desta Vila tinha resolvido cedê-lo, de sua mui livre e expontânea vontade, a este município, com a cláusula, porém, de ser única e exclusivamente destinado a um passeio público. Apressava-se, portanto, a dar conhecimento à Câmara desta importante declaração, por estar bem persuadido de que a Vereação não deixaria de aceitar e agradecer, em nome dos seus munícipes, tão valiosa oferta”. A Câmara, proclamando o doador benemérito do Concelho, aceitou a generosa dádiva. Cumpridas todas as formalidades legais, em sessão de Junho desse mesmo 1875, conferia poderes ao seu vice-presidente, Carolino José da Costa, para outorgar na escritura de doação.
E assim, destacando-o de uma propriedade ancestral de sua Família, vinculada em morgado naquele longínquo ano de 1575, e da qual ele foi 13º. senhor, o 5º. Marquês de Soydos oferecia generosamente à Câmara de Alcochete o terreno onde se viria a construir o mais aprazível local da vila – o Rocio.
Mas o testemunho pleno, o maior, da sua acrisolada afeição por esta Terra, deu-o ele na mais grave crise que o concelho de Alcochete experimentou durante a sua existência de muitos séculos – a supressão da própria autonomia municipal.
Na verdadeira luta em que os alcochetanos se empenharam pela restauração das suas liberdades municipais, o 5º. Marquês de Soydos pôs ao serviço dessa causa tudo o que possuía: desde o bens de fortuna, até ao prestígio imenso da sua Casa, do seu nome, da sua própria pessoa, então havida como uma das mais veneráveis figuras da velha aristocracia de Portugal. Certamente, por sua directa influência, a esta sagrada causa da restauração do nosso concelho se devotou, e nela tão decisiva e preponderante influência exerceu, seu irmão mais novo, D. Miguel Pereira Coutinho.
Tudo isto, bem o compreenderam os alcochetanos desse tempo, quando, numa manifestação ímpar nos anais da nossa história concelhia, sem uma só defecção o esperaram no limite do concelho, abaixo do Convento de São Francisco, nesse inesquecível dia 30 de Janeiro de 1898, e em delirante triunfo o conduziram até Alcochete, com os documentos e títulos do arquivo camarário, que ele próprio, só, e aceitando unicamente a companhia do chefe da secretaria da Câmara, José Francisco Evangelista, fora buscar à sede do concelho vizinho.
Provedor da Misericórdia durante dezenas de anos, serviu com extremos de afecto e generosidade a veneranda Instituição que seus antepassados tanto se honraram de servir.
A sua humildade e modéstia, o haviam levado a renunciar ao uso dos próprios títulos, das honras e dignidades a que tinha pleno direito, também não permitiram que desta acção benemerente ficasse outra recordação ou registo que não fosse a memória dos homens. Menção escrita dela não há, que ele nunca o consentiu.
Mas perdura ainda, especialmente entre os mais humildes, a recordação da sua grande generosidade, da sua bondade sem limites.
No cemitério de Alcochete jazem, em campa rasa, os restos mortais deste Homem que, para além de todos os seus títulos, tem para nós, alcochetanos, o título excepcional de servidor ímpar de Alcochete.
Pareceu bem à actual vereação, e assim o deliberou em sua sessão de Dezembro de 1964, que esta sepultura ficasse perpetuamente confiada à guarda da Câmara Municipal, como entidade representativa da população do concelho e realizadora das suas aspirações e vontades.
Precedeu esta deliberação o assentimento da ilustre Família directamente interessada, mediante declaração dos seus mais directos representantes.

Sabe de certeza a Câmara, ao proceder assim, que tem consigo, ao menos em espírito, as gerações de alcochetanos de 1875 a 1898. Mas com ela estão também, sem dúvida, os alcochetanos de 1967, acompanhando-a no singelo preito de gratidão a quem, com total isenção e pleno desinteresse, foi dedicado amigo dos alcochetanos, especialmente dos mais humildes, e foi grande e generoso servidor do concelho de Alcochete.


05 março 2014

Torno adonde naci.


Torno adonde naci,
Minha dívida tenho paga,
A alma me deixou aqui,
Deos a tenha em sua morada,
Que ella tornará por mim,

Renascer - comece hoje.

Pe. José Tolentino de Mendonça
Redação: SNPC/rjm | in Capela do Rato | 04.03.14

Quaresma, tempo para renascer
Ao falar de uma espiritualidade inscrita no quotidiano, o frei Carlos Maria Antunes, no livro "Só o pobre se faz pão", diz que uma das nossas dificuldades é a dispersão. O nosso coração está disperso, dividido por muitas coisas. Somos objeto de múltiplos apelos e necessidades. Um rebuliço sem fim atravessa o nosso interior. E com ele também um cansaço e uma angústia que vamos tentando compensar de várias formas.

O cansaço e a angústia são um terreno fértil para a multiplicação das falsas necessidades e falsos desejos. A dispersão provoca mais dispersão.

Neste quadro, a nossa unidade e vigilância interior, que são fundamentais no nosso interior, tornam-se frágeis. Vamo-nos tornando mais vulneráveis, e acabamos, muitas vezes, num movimento de defesa, por endurecer o nosso coração, fazendo de conta que não vejo, que não oiço. Mas esta atitude também não nos dá a verdadeira unidade de coração.

Precisamos de aprender uma arte do acolhimento da nossa própria vida. Acolhermo-nos, acolher aquilo que somos, acolher o que nos chega como uma oportunidade, mas partindo de um centro, de um núcleo vital que em nós está desperto.

O padre Carlos cita o trecho de um poeta persa, Rumi, que diz o seguinte: «O ser humano é uma casa de hóspedes; cada manhã, um novo recém-chegado, uma alegria, uma tristeza, uma maldade, que vem como um visitante inesperado. Diz-lhes que são bem-vindos, e recebe-os a todos, ainda se são um coro de penúrias que esvaziam a tua casa violentamente. Trata cada hóspede com todas as honras; ele pode estar a criar-te um espaço para uma nova delícia. O pensamento obscuro, a vergonha, a malícia, recebe-os à porta sorrindo e convida-os a entrar. Agradece a quem quer que venha, porque cada um foi enviado como um guia do Além».

Esta arte do acolhimento da vida, de saber abraçar tudo a partir de uma unidade interior, pede de nós a pobreza espiritual, a pobreza de coração.

Aquando da eleição do papa Jorge Mario Bergoglio - todos nós já tivemos a oportunidade de ouvir esta história -, o cardeal Claudio Hummes, arcebispo de S. Paulo, que estava ao lado dele, abraçou-o e disse-lhe: «Não te esqueças dos pobres». Estas palavras ficaram a fazer-lhe caminho no coração, e quando se tratou de escolher o nome, ele optou por Francisco, lembrando-se de Francisco de Assis e da sua espiritualidade universal.
Falando aos jornalistas nos primeiros dias, o papa deixou os papéis e teve um suspiro, a expressão de um desejo, e disse: Quem me dera que a Igreja se tornasse pobre e fosse uma Igreja para os pobres. Uma Igreja que se torna pobre e faz do acolhimento dos pobres a sua razão de ser, a sua missão.

A pobreza espiritual aparece-nos como um conselho evangélico, isto é, como modo de vida, como uma opção que cada cristão é chamado a fazer para se configurar a Cristo, para se tornar mais próximo de Cristo. Há mais dois conselhos evangélicos: a obediência, ou seja, a capacidade de escutar e permanecer fiel à palavra que se recebe; o outro é a pureza de coração, e aí a castidade é muito mais do que uma privação, tornando-se um modo positivo de estar na vida.

Cada um destes conselhos é vivido na Igreja por todos os batizados, embora de modos diferentes. Todos somos chamados à configuração com Cristo, que é pobre, puro de coração e obediente ao Pai.

Como é que podemos concretizar a opção por uma vida pobre, por uma pobreza espiritual? A vida espiritual não é uma técnica, não é uma habilidade, não é um conjunto de ritos. A vida espiritual é um modo de ser. E quando se fala de adotar uma atitude espiritual de pobreza no coração - S. Francisco chamava-lhe a Irmã Pobreza, ou Santa Pobreza -, temos, antes de tudo, de exercitar o nosso ser.

«Numa disciplina constante procuro a lei da liberdade medindo o equilíbrio dos meus passos. Mas as coisas têm máscaras e véus com que me enganam, e, quando eu um momento espantada me esqueço, a força perversa das coisas ata-me os braços e atira-me, prisioneira de ninguém mas só de laços, para o vazio horror das voltas do caminho» (Sophia de Mello Breyner).

Há um momento da nossa vida em que deixamos de saber de nós próprios. Parece que já não há um fundo de ser a marcar aquilo que somos e que nos estrutura, uma decisão fundamental, mas, pelo contrário, somos a dispersão.

A nossa vida não é só um conjunto de inevitabilidades: ela tem de ser uma opção fundamental, isto é, tem de ser algo que eu decido, que eu quero, um caminho que escolho, em diálogo com o Espírito. A minha vida tem de ter fundamento, para não ser uma deriva, um fragmento flutuante no oceano convulso. Precisamos de um centro.

E para ter um centro, precisamos de momentos de recentramento para ouvirmos a nossa voz interior, para nos escutarmos mais profundamente, para perguntarmos: «O que é que eu vivo? O que me enlaça? O que procuro? O que sou?». Estes momentos de recentramento são revitalizadores.

A Quaresma não são 40 dias para tentarmos fazer rituais mais ou menos arcaicos. A Quaresma é um tempo de revitalização, um tempo para nos colocarmos as perguntas-chave que vão favorecer o renascimento do que somos. E Deus sabe como cada um de nós precisa de renascer. Por isso este é o tempo de voltar a si.