13 outubro 2014

Vai-se andando.

Moda LX '14 | Nuno Gama | Pedro Henriques
fotografia de Rui Vasco
A propósito desta imagem ouvi a pergunta - Quando este senhor é um ícone da moda e o Secret Story tem o máximo das audiências, para onde vamos? Que país é o nosso?

Respondo que é um país vítima da sua própria tradição política e de participação na vida pública, em que se insiste em falar do povo como uma massa indistinta que de alguma maneira é inferior à classe dirigente, ou, pensante.

Essa postura arrogante, infinitamente burguesa, resulta numa incapacidade de criar uma cultura de intervenção cívica com um papel forte das comunidades e estruturas locais – que levaria a um ciclo virtuoso de educação e “levantamento” das comunidades.

Criou-se por isso uma tradição política, um hábito, uma forma de vida, que vive em função do que se passa e do que se quer que se passe, apenas no parlamento. E se não é quem manda a puxar a carroça, a carroça não anda.



Não há, no cidadão comum, um hábito de fazer política, no sentido lato e, talvez, original do termo, um hábito de perguntar "como é que vamos organizar a nossa comunidade?".

Vai-se andando, porque sim. E "não se pode nunca apenas ir andando."



Where the fun ain't got no end.

06 outubro 2014

A D S U M

ao Nuno



Não fugir. Suster o peso da hora

Sem palavras minhas e sem os sonhos,

Fáceis, e sem as outras falsidades.

Numa espécie de morte mais terrível

Ser de mim todo despojado, ser

Abandonado aos pés como um vestido.

Sem pressa atravessar a asfixia.

Não vergar. Suster o peso da hora

Até soltar sua canção intacta.



Cristovam Pavia

03 outubro 2014

Dorme meu filho.

(de uma fotografia de meu Pai comigo, pequeno de meses, ao colo)

Vamos através do incêncio
Mas não temas, meu filho.
Podes dormir nos meus braços frescos e fortes,
Embala-te a cadência dos meus passos.

Vamos através do incêncio
E sonhas.
Detrás das tuas pálpebras a tarde
Beija e doira as folhas dos sobreiros.

E quase me esqueço
Deste puro fogo,
P'ra te dar frescura.
Arde o meu sangue calmo.
E o meu suor, arde.

E, devagar, 
Vamos através do incêndio.

Dorme, meu filho.


Cristovam Pavia

Das fogueiras e das bruxas.

Quem quer apagar a memória?
Rui Ramos | Observador | 02.10.2014

"Hoje, por vontade dos deputados do PCP e do BE, a Assembleia da República deveria ter imposto a Portugal uma história alternativa, onde Carmona, Craveiro Lopes e Américo Tomás nunca teriam sido presidentes da república. A ambição parlamentar de corrigir o passado seria risível, se também não fosse contraditória. Estes deputados representam correntes de opinião em geral muito zelosas da memória do “fascismo”. Aparentemente, os mesmos que não nos deixam esquecer que a PIDE existiu, não querem que se saiba que o presidente Carmona também existiu. Reparem: a exposição de bustos presidenciais no Palácio de São Bento, causa desta última erupção de revisionismo histórico “anti-fascista”, não representa uma qualquer homenagem, mas apenas a sequência dos titulares da presidência da república, tal como sucede no museu do Palácio de Belém. Porque é que os presidentes do Estado Novo teriam de ser expurgados da memória histórica?

O Estado Novo foi uma ditadura, sujeitou a imprensa à censura, falsificou eleições, e prendeu, torturou, e matou oposicionistas. Não foi, porém, o único regime português que procedeu assim. A esquerda republicana, quando no poder entre 1910 e 1926, também censurou, também organizou fraudes eleitorais, também prendeu, também torturou e também matou — mas ninguém se indignou com os bustos dos seus presidentes, eleitos aliás da maneira menos democrática que se pode imaginar. É verdade que o salazarismo praticou as suas atrocidades por mais tempo e mais recentemente. Mas não há nenhuma força política neste parlamento que aspire a restaurar esse regime – como nunca houve depois de 1974. A direita democrática portuguesa jamais deixou dúvidas sobre o seu repúdio da ditadura e a sua identificação com a democracia pluralista, ao contrário da extrema-esquerda, sempre fiel a Estaline, a Trotsky e aos pequenos déspotas que aqui e ali sobrevivem da bancarrota comunista. Por que razão havíamos de ter medo de um busto de Carmona numa galeria de presidentes?

Além da nota sobre a duplicidade de critérios, a “crise dos bustos” justifica ainda outra observação: a história é sempre mais complexa do que indignações de bolso, como as daqueles que ontem compararam Carmona e Craveiro Lopes a Hitler, permitem conceber. Salazar, segundo confessou a Franco Nogueira, nunca sentiu que Carmona, republicano e maçon, estivesse totalmente do seu lado, e o nome do presidente andou, aliás, enrolado nas manobras anti-salazaristas do pós-guerra. Craveiro Lopes conspirou mesmo contra Salazar. E durante a “abrilada” de 1961, os conjurados ainda admitiram poder contar com Tomás para alterar o rumo da governação salazarista.

Não, não estou a dizer que foram “antifascistas”. O Estado Novo era uma ditadura, e uma ditadura frequentemente hedionda, mas muita gente serviu o regime ou conformou-se com ele, não porque se regozijasse com as suas brutalidades, mas porque era o que existia e não lhe via alternativa, ou até porque esperava que evoluísse para outro regime mais aberto e pluralista. Em 1968-1969, muitos dispuseram-se a confiar em Marcelo Caetano, apesar da censura, da PIDE e da guerra em África, porque se convenceram de que só ele poderia acabar com tudo isso sem precipitar o país noutra ditadura, como a oposição não parecia capaz de garantir. E houve quem, como Francisco Sá Carneiro, rompesse com Caetano quando compreendeu que não seria assim. Dizer isto não é “branqueamento”. É apenas história. E quem não percebe isso, não percebe nada, mas é verdade que os caçadores de bruxas nunca precisaram de perceber nada. Basta-lhes atear as fogueiras.

Um país não pode ter só a memória que convém a alguns. Um país não é um partido, nem um clube exclusivista. A história de Portugal é Nuno Álvares Pereira, mas também é Leonor Teles. É Salazar e é Cunhal. É Bernardino Machado e é Carmona. É toda a gente, os que achamos bons e os que achamos maus. Nem todos somos da mesma opinião, e nem sempre teremos a mesma opinião. Basta pensar no caso do marquês de Pombal. Morreu com fama de ser um dos mais corruptos e sanguinários tiranos da história de Portugal. Hoje, tem a mais imponente de todas as estátuas no meio de Lisboa.

A propósito de Pombal, aliás, houve em 1834 um episódio parecido com o dos bustos presidenciais. O arquitecto que então preparou a câmara dos deputados em São Bento resolveu decorar as paredes com nomes de figuras históricas, em letras douradas. Entre esses nomes, pôs o de Pombal. Grande burburinho, como agora. Ainda por cima, Pombal era antepassado do general Saldanha, então na oposição. Não houve conselho parlamentar, mas conselho de ministros. Decidiu-se apagar o nome com uma aguada. Mas, como conta Oliveira Martins, nos dias chuvosos, distinguia-se perfeitamente o nome de Pombal. A história vem sempre ao de cima. Às vezes, basta um pouco de humidade."



02 outubro 2014

A Nossa Senhora.


Voltarei à penumbra fresca da igreja
Ancestral, silenciosíssima e vazia,
Aonde está pousado o teu altar:
Doce mãe Maria...
E ajoelhar-me-ei,
E fecharei os olhos sem pensar...
- Que a minha oração nada mais seja:
Basta descansar.

Cristovam Pavia


Monsanto Rasteirinho.


01 outubro 2014

O que alma é no corpo.



Os cristãos não se destinguem dos demais homens, nem pela terra, nem pela língua, nem pelos costumes.
Nem, em parte alguma, habitam cidades peculiares, nem usam alguma língua distinta, nem vivem uma vida de natureza singular. nem uma doutrina desta natureza deve a sua descoberta à invenção ou conjectura de homens de irrequieto, nem defendem, como alguns, uma doutrina humana. Habitando cidades Gregas e Bárbaras, conforme coube em sorte a cada um, e seguindo os usos e costumes das regiões, no vestuário, no regime alimentar e no resto da vida, revelam unanimemente uma maravilhosa e paradoxal constituição no seu regime de vida político-social.
Habitam pátrias próprias, mas como peregrinos: participam de tudo, como cidadãos, e tudo sofrem como estrangeiros. Toda a terra estrangeira é para eles pátria e toda a pátria é uma terra estrangeira. Casam como todos e geram filhos, mas não abandonam à violência os neonatos. Servem-se da mesma mesa, mas não do mesmo leito. Encontram-se na carne, mas não vivem segundo a carne. Moram na terra e são regidos pelo céu. Obedecem às leis estabelecidas e superam as leis com as próprias vidas.
Amam todos e por todos são perseguidos. Não são reconhecidos, mas são condenados à morte; são condenados à morte e ganham a vida. São pobres, mas enriquecem muita gente; de tudo carecem, mas em tudo abundam. São desonrados, e nas desonras são glorificados; injuriados, são também justificados.
Insultados, bendizem; ultrajados, prestam as devidas honras. Fazendo o bem, são punidos como maus; fustigados, alegram-se como se recebessem a vida. São hostilizados pelos Judeus como estrangeiros; são perseguidos pelos Gregos, e os que os odeiam não sabem dizer a causa do ódio.
Numa palavra, o que a alma é no corpo, isso são os cristãos no mundo.

Carta a Diogneto
séc.II d.c.


Precisamos de Santos.

Precisamos de Santos mesmo sem véu ou batina.
Precisamos de Santos de calças de ganga ou ténis.
Precisamos de Santos que vão ao cinema, oiçam música e saiam com os amigos.
Precisamos de Santos modernos, Santos do séc.XXI, e com uma espiritualidade para o nosso tempo.
Precisamos de Santos comprometidos com os pobres e com as mudanças sociais que são necessárias.
Precisamos de Santos que vivam no mundo, que se santifiquem e que não tenham medo de viver no mundo.
Precisamos de Santos que bebam Coca-Cola, comam cachorros, naveguem na internet e oiçam música.
Precisamos de Santos que amem apaixonadamente a Eucaristia e que achem natural tomar uma bebida ou comer uma pizza com os amigos.
Precisamos de Santos que gostem de cinema, de teatro, de música, de dança e de desporto.
Precisamos de Santos sociáveis, abertos, normais, amigos, alegres e que sejam bons companheiros.
Precisamos de Santos que saibam saborear as coisas puras e boas do mundo, mas que não sejam mundanos,

São João Paulo II