26 março 2018

Um negócio de Deus | Inês Teotónio Pereira

Um Negócio de Deus
por Inês Teotónio Pereira
no DN, de 24 de Março



Descobri que os filhos são um negócio de Deus e não um assunto dos homens. Não encontro outra explicação. A um dos meus filhos digo-lhe que ele é um presente que Deus me deu e conto-lhe como foi: "Deus disse-me assim: toma lá este para te ajudar com os outros, é um brinde." Se não foi parecia: ele nasceu com caracóis louros e rechonchudo e nos livros que eu tenho de anjos, os anjos têm todos caracóis louros. Se vissem o sorriso dele cada vez que lhe digo isto. "O pior é que foste o quinto, já está tudo feito." Ele ri-se e às vezes cora. Ao mais novo dizemos que nos veio desarrumar a sala: "Foi um vendaval que Deus nos mandou para se divertir." E ele também se ri mas sem vergonha nenhuma. Uma vez escondeu-se num centro comercial e a Terra parou de girar, foram 15 minutos no inferno. "Estava a brincar", explicou ele quando um senhor o puxou debaixo de umas roupas, e estava mesmo. A quantidade de vezes que me aperta a alma quando eles sofrem, sorriem, dormem não é de mim. Ou não é só. É por isso que os filhos são um negócio que Deus faz connosco: toma lá e aprende a amar. Só pode. Eles a nós e nós a eles. É que não faz sentido. Não há nada de justo no amor dos pais pelos filhos e dos filhos pelos pais: não se dá para se receber, dá-se e pronto. Por isso é que são tantas as vezes que nos apetece atirar os nossos filhos pela janela: quando já não temos forças para dar mais. Conheço pessoas, várias, que adotaram crianças portadoras de deficiência e o que me ocorre sempre que penso nelas é a coragem. Quando e como surgiu a decisão, o que os motivou, como é que souberam que conseguiriam, quem lhes disse que iriam conseguir amar? Depois oiço-me a queixar do trabalho que os meus me dão. Coisa mais parva. Mas não, descobri que não é a coragem que conta, é o amor. É a decisão de amar. Aquela coragem vem de um amor qualquer e aquelas crianças são mais um enorme presente de Deus: fazem parte de um negócio valiosíssimo que Deus só faz com santos. Já nós, os comuns mortais, preocupamo-nos com coisas parvas e não em ser santos. Não temos tempo, nem paciência, nem coragem. Eu, pelo menos.

Eu aqui irritada com as notas dos meus filhos, por exemplo. Haverá coisa mais parva do que uma pessoa se chatear profundamente com as notas dos filhos? As notas são apenas notas, toda a gente sabe. Dizemos isto, até acreditamos, mas na prática levamos a escola mais a sério do que os filhos. Às vezes penso que é por ser mais fácil. É mais fácil olhar para as pautas do que para eles. Experimentem conversar com as crianças, com os adolescentes: é complicado, dificílimo. É mais simples reunir com os professores, que, coitados, não têm nada que ver com isto. Mas nós achamos que sim, ou que pelo menos percebem o que nós dizemos. O Papa dizia no outro dia que os miúdos estão fartos de palavras, de discursos, e que aquilo que interessa é o exemplo, mais nada. Eles ouvem tantas coisas, tantas sentenças, juízos, opiniões, considerações sobre as suas vidas e maneiras de ser que as palavras deixaram de lhes fazer sentido. São rumores, não são palavras. Não sentem que eles olham através de nós quando lhes fazemos aqueles discursos sábios sobre a vida e a experiência, o futuro e o trabalho, o mérito e a bondade? Eles olham mesmo. Uma vez fiz um discurso destes e no fim a criança perguntou o que era o jantar. Deixou passar uns instantes, como se estivesse a assimilar a parvoíce toda que eu debitei e no fim: "O que é o jantar?" São o grau zero da credibilidade, estes discursos.

No outro dia jantei ao lado de um pai e de um filho que passaram o tempo inteiro a olhar para o telemóvel e eu para eles para ver se era possível comerem a olhar para o telemóvel. E foi (com pauzinhos). Não se ouviu uma palavra durante todo o jantar, o filho jogava a um jogo e o pai entretinha-se no Facebook. O miúdo deve ter boas notas, pensei, se não têm nada de que falar. Ter boas notas é meio caminho andado para calar e afastar os pais, aprendi. Li num livro a história de um pai que andava preocupado com as notas miseráveis do filho e com o seu desinteresse por tudo. "Vai jantar com ele e não lhe fales das notas nem da escola. Não leves o telemóvel", aconselharam. Foi o que bastou. Falaram até hoje. Aquele meu filho lá de cima - o presente - adora falar e isso facilita tudo. A coisa que ele mais gosta de fazer é de ajudar-me a tirar a loiça da máquina enquanto me pergunta tudo o que lhe passa pela cabeça. Não sei, é raríssimo saber as respostas. Mas ele adora falar: "Já posso falar?", pergunta ele à espera da vez. Os filhos falam, não ouvem - somos nós que devemos ouvir. Ouvem e veem. Mas há paciência? Quase nunca. Lá está, somos o comum dos mortais. Tenho um que me telefona a dizer que vai lanchar: "Olá, é só para dizer que cheguei e vou lanchar." Só isto. Riu-me sempre que ele me telefona porque tenho a certeza de que é Deus a fazer uma piadinha, a gozar comigo enquanto me ensina a amar. Há coisa mais bonita do que isto? "Olá, é só para dizer que cheguei e vou lanchar."

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