15 maio 2012

telegrama filosófico nº3

Pergunta: 
Porque é que a lógica utilitarista não funciona?
Resposta: 
1. Felicidade = Prazer. O Mill ainda bracejou a tentar dizer que havia prazeres superiores e inferiores, mas meteu-se numa embrulhada. Por isso, a ser uma moral, é um bocado animalesca;
2. Em nenhum ponto considera como "bem" ou sequer "valor" coisas consensuais como dignidade do ser humano, por exemplo: sou médico, tenho um doente velhote com maior probablidade de morrer, mas com órgãos bons; tenho outro jovem a precisar de orgãos - tenho por isso, o dever de matar o velhote, tirar-lhe os órgãos e dar ao novo, porque da vida dele virá certamente maior felicidade para mais pessoas (mais exemplos fáceis, como aborto, e até infanticídio, peter singer style);
3. Supõe que é possível prever as consequências das nossas acções - porque se baseia num cálculo: o único dever moral que temos é calcular a quantidade de prazer/felicidade/utilidade (tudo igual) que as nossas acções produzem e para quantas pessoas; o objectivo é maximizar, por isso entre uma que traz menos e outra que traz mais, a boa é a última. o problema é que não temos nunca maneira de prever assim as consequências;

telegrama filosófico nº2


p'la telegrafista que tem uma coisa a dizer.

Adam Smith queimaria esta malta.

Henrique Raposo
no Expresso de 27 de Abril

"Os magos matemáticos do mundo financeiro não são os únicos culpados pela crise de 2008, mas estão, sem dúvida, no pódio da culpa. Estes geeks dos modelos matemáticos criaram um mar de dinheiro irreal, sem relação com a actividade económica. Este planeta da abstracção financeira, habitado por algoritmos e derivados, chegou a ser 40% mais rico do que o PIB real do mundo inteiro. Em 2006, o PIB de todos os países do mundo era de 48,6 triliões de dólares, mas o valor de acções e derivados estava nos 67,9 triliões (contas de Niall Ferguson). Os famosos "activos tóxicos" escondiam-se - e escondem-se - nestes 40% de malabarismo financeiro. De forma surreal, esta feitiçaria matemática criou uma torre de marfim que está tão distante de Adam Smith como de Marx. Isto já não é liberalismo ou "capitalismo". Isto é geekismo. 

Antes de 2008, os tais modelos matemáticos diziam que uma crise de liquidez era virtualmente impossível. Resultado? A relação entre dinheiro-em-caixa e activos-financeiros-garantidos-por-dívida podia ser de 1 para 19. Foi o que aconteceu à Long-Term, empresa de dois prémios Nobel de Economia, Scholes e Merton. Esta empresa tinha 6,7 mil milhões em depósito, mas possuía 126 mil milhões em bens gerados na ficção financeira. Porquê? Porque os computadores diziam que uma crise de liquidez era uma impossibilidade até ao fim do universo. Problema? Estas fórmulas funcionavam com dados dos últimos cinco anos. Portanto, aquela absoluta certeza científica (repito: a crise do subprime era impossível até ao fim do universo) assentava num cálculo que apenas contemplava dados dos últimos cinco anos. Como é que um cientista pode ser tão irracional? Depois do caos de 2008, um dos geniozinhos da Long-Term disse o seguinte: "se eu tivesse vivido a crise de 1929, estaria em melhores condições para perceber os acontecimentos". Os geeks sabem muito de matemática, mas nada de história. E o habitat da economia é a história, e não a matemática.

Após 2008, seria de supor que esta arrogância científica desaparecesse do centro da finança. Mas isso não aconteceu. Aliás, o cenário ficou ainda mais lunático. De 2008 para cá, os algoritmos aumentaram a sua presença. O que é um algoritmo? É uma fórmula matemática do tamanho de um camião TIR, uma sucessão de instruções matemáticas que cria um mecanismo-que-pensa-por-si, uma máquina que toma decisões sozinha. O sistema de algoritmos (High Frequency Trading - HFT) controlava menos de 25% das transacções dos EUA em 2008; em 2012, já controla 70% das transacções americanas e 40% das europeias. Até parece piada. O factor que nos conduziu ao abismo de 2008 (modelos matemáticos) aumentou a sua dimensão e complexidade. Estamos a curar o doente com mais uma dose da doença. Chegou-se ao ponto em que os fluxos financeiros já não estão em mãos humanas. A matemática em forma de máquina (algoritmo) expulsou os corretores, aqueles humanóides que gesticulavam nas bolsas.

Tal como Jorge Nascimento Rodrigues escreveu nestas páginas, esta situação parece um filme de ficção científica. Eu acrescentaria que tudo isto soa a distopia científica. Quando a venda e a compra de milhões de obrigações é feita num micro-segundo e sem intervenção humana, é sinal de que já estamos num Admirável Mundo Novo, ou seja, já estamos para lá da moralidade humana, a beijar um mundo pós-humano liderado por uma mentalidade técnica e científica que é intrinsecamente amoral. Aliás, esta amoralidade científica ficou evidente numa reportagem do Financial Times (bastante crítica em relação ao domínio do algoritmo no sistema financeiro). Na Terra do Nunca do geek financeiro, a Financial Computing Centre, em Londres, o repórter do FT encontrou um grupo de matemáticos que vive num mundo virtual de fórmulas e linguagem de computador. Muitos destes matemáticos assumem que este paradigma financeiro cria enorme volatilidade, mas também dizem que não estão preocupados com isso. Porquê? Porque só eles podem resolver essa instabilidade provocada por modelos matemáticos. Um dos alunos chega mesmo a declarar que essa instabilidade o coloca "numa situação muito boa". Ou seja, aquelas cabeças criam a doença e o antídoto ao mesmo tempo. Pior: naquelas cabeças, as economias e as sociedades reais não existem, porque tudo é um jogo de abstracção matemática. É chocante a forma como desprezam as consequências que as suas fórmulas têm na vida real (o subprime não lhes pesa na consciência). E tudo isto vem embrulhado na típica arrogância tecnológica da espécie. Um aluno anuncia um futuro em que os bancos serão controlados por algoritmos: "não será precisa qualquer intervenção humana", diz Michal Galas. O facto de a crise de 2008 ter sido causada por esta arrogância informática e matemática é algo que não afecta a fé científica destes indivíduos. Não por acaso, o director da escola, Philip Treleaven, revela a velha snobeira epistemológica das ciências quantitativas. Segundo o rei dos geeks, apenas os algoritmos e demais bicheza matemática garantem um conhecimento efectivo não apenas da finança, mas de qualquer campo de estudo, inclusive música e política ("computational politics"). Esta petulância quantitativa não é nova. O que é novo é o contexto: o centro financeiro do Ocidente deixou-se tomar por cientistas que produzem fórmulas que, como já vimos, são válidas em qualquer parte do universo com a excepção de um lugar: a sociedade humana, a história humana.

O velho debate girava em torno de quem defendia a superioridade moral da economia aberta e em torno de quem apontava o dedo à imoralidade intrínseca do "capitalismo". Sucede que esta finança de geeks e algoritmos não toca no debate moralidade/imoralidade. Porquê? Porque é um sistema intrinsecamente amoral. O seu problema não é a imoralidade da ganância, mas a amoralidade da hubris científica. E isto é um desafio novo. Um desafio que, além de causar desastres financeiros, coloca em causa dois pressupostos clássicos das sociedades liberais. Em primeiro lugar, destrói o princípio da fiscalização. Nós sabemos como fiscalizar a boa e velha ganância dos Gordon Gekkos: a montante, existem reguladores e, a jusante, existem tribunais. Mas como é que se fiscaliza um algoritmo que é incompreensível para 99,9999% dos seres humanos? A opacidade do HFT corrói a necessária transparência e previsibilidade da sociedade liberal. Em segundo lugar, a superioridade da economia aberta, cosmopolita e comercial ("capitalismo" no calão marxista) sempre assentou na sua intrínseca humildade. Adam Smith não inventou nada, apenas constatou um facto: o ser humano procura acumular riqueza para proteger a sua família ("propriedade privada" no calão marxista). Quando desprezam esta simplicidade moral do ser humano, os sistemas económicos falham. O marxismo falhou, porque era um modelo inadequado a seres humanos. Talvez a arrogância científica do marxismo funcione noutro planeta, tal como este mundinho financeiro de geeks e algoritmos."

...em perigos e guerras esforçados.

09 maio 2012

"ponto"
tem ponto-cruz... tem ponto final... tem ponto acrescentado ao conto... tem ponto de ordem... tem ponto de honra... tem ponto negro... tem ponto por ponto... tem dois pontos... tem ponto no mediterrâneo clássico... tem ponto no jogo... tem ponto de argumentação... tem ponto de coordenada... tem o meu ponto... tem o seu ponto... tem ponto de situação... tem ponto, depois outro e mais um... tem ponto e pronto...

08 maio 2012

cansado da espuma dos dias, a viver naquela espelunca de espasmo e espinhas, passava a esponja de água na cara nas noites sem dormir, por causa da espectacular expectoração do espanhol no quarto ao lado. Na alma, uma espora cravada que o empurrava para a frente contra os gigantes. Era esse permanente espanto, essa espécie espessa, de espessura variável, de esperanças espelhadas na espera de quem, expedito, aguarda expectante a experimental expressão do amor, assim, expresso em especial espalhafato interior.


a partir da lista: espelunca expectoração espanhol espinha esponja espora espuma espasmo espanto espectacular espalhafato expresso especial experimental expressão espelhada esperança espera expectante expedito espessa espécie espessura

04 maio 2012

inspirational friday #11


"but you and I know we can be alright
just hold on to what you know is true"

enquanto o comboio passa
pare, escute e olhe
sinta, veja e oiça
ganhe tempo

03 maio 2012

A morte do Barão de Teive.

Simão Lucas Pires
© SNPC | 02.05.12

A dúvida parece ser a versão moderna do bom-senso. Dir-se-ia mesmo que, nos nossos dias, ela é o distintivo da gente sensata. Gente que duvida da religião em nome da racionalidade. Gente intelectualmente emancipada. Gente precavida contra as paixões do pensamento, gente que não cai na infantilidade de acreditar em coisas misteriosas. Gente que, na verdade, costuma ter a gramática um pouco baralhada: da boca para fora só saem pontos de interrogação, mas depois é vê-los viver na paz dos pontos finais. Acho muito bem que a humanidade pense – mas, se é para pensar, é para pensar até ao fim! Eis o lema do Barão de Teive, semi-heterónimo de Fernando Pessoa. Que não teve um final feliz.

Trata-se de uma figura literária que ajuda a olhar lucidamente para o que está em causa no grande dogma da modernidade. O dogma diz: não aceites como verdadeiro nada senão aquilo de que possas ter uma certeza racional. Esta, claro, é a formulação oficial, a que vem no papel. Na vida do homem moderno o conteúdo sofre uma alteração importante. Ninguém está interessado em duvidar do que não é interessante duvidar. Entre o homem e o dogma aparece um intermediário particularmente experiente em matéria de condução vital: o desejo do homem. E este desejo, sob a proteção que lhe oferece a cândida imagem de que o dogma goza no mundo, reduz a prescrição enunciada a um útil instrumento de destruição daquilo que não lhe convém. Ter deveres que implicam renúncia e sacrifício, por exemplo, é algo que não convém a nenhuma pessoa sensata.

Desta vez, porém, vamos deixar de parte a esperteza, que é um pecado bem conhecido, e concentrarmo-nos no próprio problema do racionalismo. O Barão de Teive representa essa tentativa de viver a partir da compreensão intelectual. O projeto pode até parecer lógico, saudável e entusiasmante à primeira vista. O mesmo não se poderá dizer da lição que o Barão, ao tentar pô-lo em prática, acaba por aprender. “Desde que existe inteligência, toda a vida é impossível” (1), escreve ele na Educação do Estoico. Eacrescenta mais à frente: “Atingi, creio, a plenitude do emprego da razão. E é por isso que me vou matar.” (2) Porquê? Por que é que alguém que leva a sério o uso da razão acaba num desespero tão grande? Poder-se-ia pensar que o Barão se mata por ter concluído que não há sentido. Mas o Barão mata-se porque o rigor que põe na sua investigação impede qualquer conclusão definitiva acerca do sentido ou da falta dele – e esse nada que está então condenado a habitar é inabitável. Os brandos racionalistas que enchem as nossas cidades esquecem-se que toda a conclusão é um atentado à inteligência, uma interrupção ilegítima do pensamento; não só as conclusões dos outros, mas também o chão óbvio do seu dia a dia livre de misticismos. A personagem de Fernando Pessoa, representante da exigência intelectual máxima, não é capaz de se agarrar a nada, porque um ponto de vista finito nunca está em condições de se fixar seguramente ao que quer que seja. O Barão de Teive é a inteligência a perceber que chegou cá depois do ser – e as consequências insuportáveis de sentir isso com todo o coração. Vivemos já dentro dessa palavra primeira e todas as tentativas de compreendê-la, de agarrá-la pelo colarinho, de encostá-la à parede e pedir-lhe justificações, são tentativas tão desajeitadas quanto as de uma mão que queira agarrar-se a si própria. Isto quer dizer que há algo de muito errado no tom de voz confiante que caracteriza os apologistas da conduta racional da vida. Reza a lenda que Pirro, o cético dos céticos, não se desviava sequer da parede quando andava, pois desviar-se significaria ter uma confiança cega e irracional na tese de que a tal parede era real. O comportamento do pai simbólico do ceticismo pode ser visto como uma tontaria filosófica, mas a verdade é que a caricatura serve para iluminar o fosso de seriedade que separa a dúvida de quem está honestamente preocupado em ver esclarecido o sentido da estranha história em que estamos metidos e a dúvida – que eu apelidaria de “burguesa” para evitar ser ofensivo – desta gente intelectualmente emancipada. A única emancipação intelectual é perceber que, do ponto de vista intelectual, estamos todos perdidos.

Será que já olhámos bem para o que se passa aqui? Vamos morrer e experimentamos a alegria; vemos árvores recortadas contra a noite, as bailarinas de Degas, crianças com pelo e alma que saem da barriga das mães. Há água, a simplicidade incompreensível da água, eletrões em movimento por todo o lado e pensamentos cuja casa é a solidão de cada um. Possuímos a atenção, a crueldade, o amor, a vontade, a inteligência, o egoísmo, a memória. E, perante tudo isto e tudo o mais, perante o desfile de um mistério com infinitas formas, há quem venha falar de racionalidade, como se tivesse um saco para guardar acontecimentos tão espantosos. Chego a pensar que os pagãos antigos, com a sua catrefada de devoções, vendo três deuses atrás de cada objeto, eram menos imaginativos do que estes filhos da modernidade devotos de uma segurança intelectual que nunca ninguém viu. Uma coisa é procurar honestamente a verdade; outra é esperar que caiam silogismos do céu para resolver o problema do significado da existência, como se o facto de eles nunca terem caído não fosse um dado a tomar em conta na resposta que temos de dar.

A razão, de facto, é um dom imenso. Mas, se a deixarmos falar sozinha e até ao fim, ela revelar-se-á o seu próprio abismo. E não é apenas o cético a meio-gás quem tem a aprender com esse facto. Também para os cristãos é importante lembrar o fracasso radical da sabedoria humana. Lembrá-lo pode ser um passo na direção daquela verdade estrondosa que o Evangelho de São João anuncia. “E o Verbo era Deus”, diz o texto (Jo1, 1). Deus não é o ponto alto, o toque sublime, a cereja no topo do bolo da existência; Deus, Aquele que a Cruz e a Ressurreição nos fizeram conhecer, é o próprio sentido de tudo o que há. Isto faz toda a diferença – ou deveria fazer. A diferença, por exemplo, entre ter Cristo como refúgio das horas más e tê-Lo como o Pão nosso de cada dia.

(1) TEIVE, Barão de, A Educação do Estoico, Assírio e Alvim, pág. 28.
(2) Ibidem, p. 57.

time is on his side...