Naquela noite despediram-se como tantas vezes tinham feito, da porta para o sofá. Um até amanhã que era mais um até logo: "até amanhã; até amanhã se Deus quiser". Nessa noite Deus quis diferente.
Quando o viu outra vez, o filho passou a rematar com "se Deus quiser" e um sinal da cruz na testa do pai, que com um leve piscar do olho e um quase imperceptível mexer das linhas em torno dos lábios a desenhar um sorriso, retribui a deixa. O que acontecia de fugida, da porta para o sofá, toma agora o seu devido tempo à cabeceira da cama.
Há quase trinta anos que pai e filho se cruzavam e viam quase todos os dias, e o filho nunca tinha visto o pai, pelo menos daquela maneira inteira de quem presta atenção. Nunca tinha olhado para ver. Percebeu isto na primeira visita que lhe fez. O pai já não podia falar. Tinha-lhe escapado, na confusão do acidente, essa coisa sublime que nos foi dada e que é pensar e dizer...
Acidente... uma vida inteira de avarias de carro e de mota, de curvas a direito disparadas da anca e às costas de um palpite de que não vinha ninguém e foi sentado no sofá a ver as notícias depois do jantar que teve um... "acidente".
Foi enquanto se demorava nestas coisas que desarmam a lógica por não a ter, que o filho percebeu que o pai agora se exprime de outra maneira. Todas as rugas e cada linha, o brilho de um olho que sabe o que vê e os traços burilados ao estilo de uma vida entregue são quem agora diz as coisas. A linguagem é diferente e é preciso aprender outra vez esse novo dialecto que implica conhecer o pai em 3D.
Como é que se faz? Como é que se distingue um gesto porque lhe apetece de um que quer significar? É um jeito novo que o pai agora usa, e que precisa que se esteja e permaneça, e que se vá ficando para ver desenrolar à nossa frente o engenho de quem diz com tudo menos as cordas de falar. É como ressuscitar, e nós com ele. Um jeito que obriga a olhar para ver.
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