01 março 2012

Sangue Solto.

por Jacinto Lucas Pires
no essejota


Maria olha pela janela. Não parecia nada de especial. Caiu, chorou, calou-se. Mas depois ficou demasiado calado, tempo demais. Com um olhar diferente, de um pânico bem educado, como se tivesse acordado a meio da noite numa história de adultos, no museu dos brinquedos. No hospital descobriram que tinha sangue solto na cabeça. Puseram-lhe uns tubos finíssimos, disseram umas palavras inteligentes à mãe e ao pai, e ele não aguentou. Não parecia nada de especial, um miúdo pequeno a cair como todos os dias caem milhões de miúdos pequenos no mundo. O dela tinha de ser especial. Porquê, meu Deus? Pela janela da sala, Maria vê o que já viu demasiadas vezes. Não sabe o que procura. A estrada, a linha de comboio, o rio largo. Tudo tem outra coisa atrás. Tudo é falso, tudo contaminado, todas as coisas feitas de sangue solto. E, ao mesmo tempo, tudo tão monótono, tão plano, tão chato. 


Há manhãs em que se lembra daquele dia. Há dias em que diz o nome dele na sala vazia, depois do João Ricardo ir para a farmácia, depois de ter aspirado o pó, tratado da roupa e da loiça, e fica à espera. 


“Paulo”, diz. 


Não como se chamasse, como quem responde a uma pergunta. 


Um mês depois do enterro, Maria estava ali de pé a olhar pela janela e disse o nome do filho e Paulo, ou a sombra dele, uma imagem feita de reflexos, restos, um corpo, como é a expressão, translúcido, apareceu. Vinha do rio e atravessava o comboio e o trânsito sem ficar maior como tudo o que se aproxima nem se despedaçar como tudo o que queremos demais. De repente, Maria sente uma presença atrás, vira-se.


À entrada da sala, uma pessoa igual. Como é possível? Vestida com o mesmo fato de treino sujo que ela usa para as limpezas; o cabelo mal pintado e mal lavado, as mesmas olheiras negras. Será ela? Então quem é ela? Isto é, de onde é que ela-Maria olha aquela pessoa nova?


Com a leveza de quem anuncia uma baixa de preços no supermercado do bairro, a mulher diz: “De todos os mortos da eternidade, minha senhora, quem é que ressuscitaria?”

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