07 março 2012

da carmencita e o fadisteco: a carmencita.

a carmencita é em bruto. uma meia-cigana bonita e terrivelmente desperta, olha fundo como mais ninguém sabe, e fala rouca e à boca cheia, como ela diz. tem os cabelos sempre soltos e grandes e uns brincos enormes e belíssimos, que abanam um bocadinho com os jeitos da cabeça. fala de amor como quem faz renda, de tantas vezes que já se apaixonou. já lhe vi o coração partido, e era triste como restos de lume morto, frio, numa manhã cinzenta. fugiu dos pais quando era pequenina e conhece bem as veias de lisboa. não tem medo de quase nada, não tem medo, por exemplo, de dar a mão às pessoas. a carmencita, se não tivese nascido aciganada, seria afectuosa ou talvez até ternurenta. mas o seu sangue corre depressa demais. ri muito alto, chora muito alto, enerva-se com as coisas mais pequenas, e quando se apaixona, a carmencita toda reluz: os cabelos mais brilhantes, os olhos mais fundos, as mãos mais expressivas, as saias mais rodadas. a carmencita reza de joelhos, todas as noites, à beira da cama: “Oh Meu Deus ___” e suspira. quando se sente especialmente devota, reza o terço com umas contas da avó, gastas, que tem guardadas num saquinho de couro, ao lado da imagem de s. francisco.

a carmencita é uma mulher de armas. um dia um fadisteco desses que canta em duas ou três tascas duvidosas quis enganá-la com cantigas. ela avisou-o “Vou dar-te muito trabalho”. já passaram muitos meses, e continuam ele a dar-lhe cantigas e ela a dar-lhe trabalho. “mas às vezes trocamos…” disse-me ela hoje “e quem me dá trabalho é ele a mim”. não consigo dizer se a carmencita está arrebatada. se é desta. não sei porque é que, nem como é que eles, passado tanto tempo, continuam – não sei se ‘juntos’ é a palavra mais certa…um com o outro, pelo menos. mas aí estão eles, a fazer tremer as nossas teorias sobre relações, comunicação, e outras modernices.

“o amor”, diz a carmencita, “não é nada complicado. ou se gosta e pronto, ou não se gosta e pronto.”»


Assim, livre. coração entregue e mundo à espera. A fazer porque quer, nunca refém das poeiras. Senhora das coisas da vida que doem. Nunca senhorita de estimação, de dorezinhas e encostos predilectos. Forte e digna, simples e bondosa. E quando quer, serena e doce ternura de colo.

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