por Henrique Raposo
Adoro aquela personagem que ama a Humanidade enquanto despreza todos os homens em concreto. Adoro encontrar este figurão nos livros e na vidinha. Adoro a maneira como enche a boca com o Bem Comum enquanto olha com rancor para as pessoas em seu redor. Aqui no bairro, há um assim. Está sempre no café a perorar sobre Justiça Social e não sei quê, mas depois é incapaz de ajudar seja quem for. Até pinga, aquele desdém, aquele ódio por gente de carne e osso. Mas é uma situação compreensível, coitadinho. No fundo, ele é um mártir. Amar a Humanidade em abstracto é uma cruz pesada. Quem ama a Humanidade não tem tempo para os vizinhos.
No mundinho dos livros, o meu mártir favorito é o utilitarista James Mill, esse sujeito que fazia textos sobre o Homem enquanto esmurrava o seu filhinho, John Stuart Mill. E, como todo o vaso ruim, James Mill deixou descendência intelectual. Hoje em dia, a enternecedora chama do utilitarismo é carregada por Peter Singer, um dos mais respeitados filósofos da actualidade. Como se sabe, Singer tem partido a cabeça a pensar numa ética universal para toda a Humanidade. Por outras palavras, Singer tem a pretensão de criar uma única lei para todos os homens do planeta. Do planeta, atenção. Do mundo. Da Terra. O facto de existirem dezenas de culturas e centenas de países é um pormenor sem importância. Porquê? Porque, ora essa, é tão bom colocar o globo na mão esquerda enquanto a mão direita faz onanismos ideológicos. Ai, a Humanidade. Ai, o Homem. Que se lixem os chineses, indianos, brasileiros, sul-americanos, russos, japoneses, etc. O que seria do intelectual ocidental sem este namoro com a Humanidade?
Ora, este homem tão preocupado com a Humanidade é o mesmo que defende o infanticídio de recém-nascidos. Como recordou Manuel António Pina há dias, Singer admite, em nome do mais radical neo-utilitarismo, "o direito a matar recém-nascidos deficientes profundos cuja sobrevivência fosse expectavelmente origem de infelicidade para o próprio e família". Peter Singer, homem de Esquerda, homem de Progresso, homem da Humanidade, acaba por defender uma coisa que deixaria Hitler com um sorriso nos lábios. Se seguíssemos este raciocínio até ao fim, teríamos de matar os velhos doentes. Aliás, estou desconfiado que não deve faltar muito para surgir um artigo mui científico a propor o velhicídio, tal como surgiu há dias um artigo que defendia o infanticídio de recém-nascidos (mesmo sem deficiência). A história muda, mas as personagens ficam: o amor pela Humanidade, essa virgem pura e abstracta, esconde sempre um enorme desprezo pelos seres humanos em concreto.
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