13 março 2012

Epicteto e o bom orgulho.

por Simão Lucas Pires

O orgulho tem o problema da impertinência: só não entra em cena quando o deveria fazer. E daí decorre grande parte da trapalhada ética em que estamos metidos. Quem contribui para pôr isso a nu é Epicteto, filósofo estoico do século I. Trata-se, para mal da sanidade moral da humanidade, de um pensador caído no esquecimento. Em Portugal, de modo particular, é difícil encontrar algum livro ligado ao seu nome. É pena: Epicteto é o melhor remédio contra a tendência de viver refém do que acontece, contra a doença de querer que seja o mundo a fazer as vezes de mim. Lendo o “Manual”, o livro no qual um discípulo seu reuniu os ensinamentos do mestre, a surpresa de raramente ter ouvido falar deste filósofo impõe-se por si. Como se pôde afastar do cânone um génio de imagens tão simples e de uma seriedade tão clara?

O “Manual”é uma proposta de transformação existencial, dividida em várias sugestões de ordem prática. Certos pontos ligados ao projeto estoico de alcance da impassibilidade parecem bizarros e até pouco razoáveis aos nossos olhos. Mas o núcleo da transformação em causa é válido para todos. Epicteto compreendeu, antes de mais, que a vida é sempre a habitação de uma pergunta. E a pergunta-rainha, aquela que se senta no trono que existe ao fundo da solidão de cada um, costuma ser: «mundo, o que é que me ofereces?» Sob diferentes formas, formas até respeitáveis como o entusiasmo no amor e o sucesso no trabalho, é esta vontade de arrancar bens à existência que reina. Aquilo a que se costuma chamar a procura da “realização pessoal” – e parece que, ao pronunciar a expressão, tudo se torna mais lento e um feixe de luz entra pela janela. O problema é que este desejo, apregoado em todo o discurso pós-moderno, elevado até ao estatuto de direito, não é tão cândido quanto certas bocas dão a parecer. Não prestamos nenhuma atenção ao que esta ditadura da realização pessoal faz de nós, mas a verdade é que corresponde a maior parte das vezes à aniquilação da liberdade e à renúncia a um rosto próprio. Se tudo o que faço é cobrar impostos à vida, quem é que eu sou? Se a medida dos meus gestos não estica para lá da felicidade recebida em troca, não sou apenas um escravo, um miserável e sofisticado escravo da sensibilidade? A primeira lição de Epicteto tem que ver com isto. Uma identidade hipotecada à passividade não é nada; um homem cuja vontade se rendeu às inclinações não é ninguém. Sem espalhafato, em conformidade com as regras sociais e sem olhar de frente o que andamos a fazer, é muitas vezes essa a via que percorremos. Como Dorian Grays de medida quotidiana, como Dorian Grays de roupão e pantufas, deixamos a verdade no sótão para ir atrás de outra coisa qualquer.

Pois Epicteto, perspicaz na compreensão da violência assim perpetrada contra a dignidade do homem, propõe uma atitude diferente: «É um homem belo, uma mulher bela que atinge o teu olhar? Encontrarás a continência. É o cansaço que se impõe? Encontrarás a resistência. Insultos? Encontrarás a paciência.» Há uma inversão no que diz respeito à relação com os acontecimentos. A pergunta fundamental deixa de ter a ver com o que recebo, com o que “sinto”, e passa a ter a ver com o que “sou”. As coisas são a oportunidade de eu ser maximamente, de eu ser o melhor possível. É importante perceber que não se trata aqui de nenhuma obsessão moralista. Epicteto não inventa esta nova pergunta; limita-se a olhar para ela, para esta pergunta à qual, querendo ou não, estou sempre a responder. Eu sou aquilo que faço. Não querendo entrar em formulações metafísicas demasiado aéreas, há que ter como ponto assente que fazer é o ser a ser. Fazer é o ser a mostrar-se, o ser a sair à rua, e não apenas uma excrescência qualquer que se me acrescenta sem borrar o meu rosto. Talvez esse seja o maior mal-entendido na compreensão espontânea da ética: julgar que as minhas ações são uma coisa à parte da minha identidade. Esta é uma ideia que se apodera de nós com muita facilidade. Quando penso em mim, penso em quem? Penso no escritor que escreve os livros que eu nunca escrevi. Penso com a imaginação, não com o que os factos de facto dizem. Penso numa possibilidade – penso em algo que não sou. Todos os conselhos de Epicteto, no estilo sóbrio e exigente que lhe é próprio, visam, em sentido contrário a esta tendência deturpadora, focar a atenção naquilo que realmente se é ao fazer o que se faz. Ao centrar o seu discurso na liberdade, na circunstância de a liberdade ser o único âmbito onde pode estar constituído o significado da minha vida e uma identidade digna desse nome, o filósofo mostra que a tática com que normalmente jogamos é, numa palavra, má.

Percebemos, no fim de contas, que tudo é uma questão de “bom orgulho”. O “Manual” põe-nos à frente do nariz a escolha entre ser uma marioneta sofisticada ou um homem, e não é difícil imaginar qual dos lados é que defende. Tenho quase a certeza de que Epicteto, se os céus lhe concedessem uma visita a Queluz, gostaria da ironia venenosa da canção do Tiago Guillul na qual se diz que o “mundo é o pretexto para o passeio do turista.” É precisamente contra esse passeio afetado, arrogante e fingidamente distraído em relação à profundidade das coisas que o estoico se insurge. O turista é a criatura ridícula que experimentou tudo e não foi ninguém, percorreu o mundo inteiro e esqueceu-se de si. O homem livre não.

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