in Público 2011-05-30
"Liguei o aparelho na RTP1. Segunda parte do Manchester-Barcelona, uma boa surpresa, tinha-me esquecido do jogo. Esperei pelo Telejornal. O país a uma semana de uma eleição, num momento crítico, etc. - vocês sabem a história.
A primeira notícia do Telejornal foi sobre o jogo de futebol que eu tinha acabado de ver. Era uma final europeia, tudo bem, mas a notícia era redundante: o jogo tinha acabado 30 segundos antes, que diabo, naquele mesmo canal.
Não me lembro de quais eram as notícias seguintes. As chuvadas, um acidente, essas coisas. Sobre a campanha havia primeiro uma peça sobre o lado íntimo, ou lá o que era, de Pedro Passos Coelho: o candidato explicava que nunca foi gordo, que não gostava de se sentar na relva porque lhe doía o rabo, etc. Tive pena dele; é preciso paciência para fazer aquele papel e ouvir aquelas perguntas, sempre com o mesmo sorriso na cara.
Depois veio uma peça sobre Julio Iglesias, que veio fazer um concerto a Portugal. A RTP decidiu entrevistá-lo - pressupõe-se - pela relevância artística e social do cantor espanhol. Um juízo discutível como outros. Vai daí, do que tratava a entrevista? Do seu álbum? Do concerto? Não. De José Mourinho. Se Iglesias gostava de Mourinho. Se Mourinho era ou não o melhor treinador do mundo. Se Mourinho vai ou não ganhar o próximo campeonato.
A falta de critério cultural dessa entrevista - ou a RTP acha que Iglesias é um cantor importante, e pergunta-lhe sobre a sua música, ou acha que ele está acabado, e não lhe pergunta nada - significa apenas uma coisa: que a RTP tinha desistido de ter uma posição, qualquer que ela fosse. Bastava-lhe ir com o tempo: se toda a gente está obcecada com Mourinho, a RTP pergunta sobre Mourinho a toda a gente. Assim o jornalismo fica só uma questão de achar um lugar para pôr a câmara.
A esta falta de critério cultural sucedia-se uma perturbadora falta de critério moral. O telejornal passou para uma peça sobre o caso em que uma adolescente foi agredida por outras duas adolescentes, enquanto tudo era filmado por um jovem. A RTP mostrava o filme, se não quase todo, muito mais do que necessitaria mostrar para que estivéssemos "informados". Ao contrário do que parecia achar o jornalista e o editor responsáveis, eu não preciso de ver uma rapariga apanhar pontapés na cabeça para saber o que se passa; não ficarei mais informado por cada segundo a mais de pancada. Há ainda formas de, no jornalismo, descrever, resumir, interpretar. Creio que a isso até se chama, salvo erro, fazer jornalismo.
Uma das coisas que chocavam naquela história era como podia o rapaz ter filmado a agressão em vez de parar para pensar. Também chocava, num plano diferente, ver como o jornalista tinha decidido mostrar o vídeo em vez de parar para pensar.
Depois do Telejornal, descobri que estar fora do tempo e do espaço vale o mesmo que estar completamente dentro do tempo e do espaço, mas a falar daquilo de que todos já falam, e a fazer aquilo que todos já fazem.
Daqui a poucos dias, a RTP dirá - como todos dirão e precisamente porque todos o dirão - que a campanha foi pouco "esclarecedora"."
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