05 fevereiro 2013

Está na hora.

no essejota.net
edição 91 | 01.02.13
secção de música

Partia no dia seguinte rumo a não sabia bem o quê.

Não ia ser como tinha sido até ali, seria outra coisa. E isto era tudo o que ele sabia.
Partia por querer e por ter de ser, ou talvez fosse por ter de ser para continuar a querer, para ter um querer de que fosse dono e que o fizesse ir em frente para cumprir essa promessa de si. Para não ficar, apenas.

Contando que nessa noite de vésperas o sono viria só depois, deixou-se ir ficando na sala, à espera, quando todos tinham já saído. Passou os olhos pelas coisas e demorou-se nas ideias e nos retratos da família, pensando se teria ou não saudades.

Levantou-se para ir dormir e ao passar pelo escritório ouviu chamar "Senta-te aí... Está na hora de ouvires o teu Pai".Nunca sabia muito bem o que esperar quando era chamado ao escritório. As coisas nem sempre eram fáceis entre eles e as últimas semanas não tinham sido as melhores.



está na hora de ouvires o teu pai
puxa para ti essa cadeira
cada qual é que escolhe aonde vai
hora a hora e durante a vida inteira

podes ter uma luta que é só tua
ou então ir e vir com as marés
se perderes a direcção da lua
olha a sombra que tens colada aos pés

estou cansado aceita o testemunho
não tenho o teu caminho para escrever
tens de ser tu com o teu próprio punho
e era isto que eu te queria dizer

sou uma metade do que era
com mais outro tanto de cidade
vou-me embora que o coração não espera
à procura da mais velha metade

está na hora de ouvires o teu pai
puxa para ti essa cadeira
cada qual é que escolhe aonde vai
hora a hora e durante a vida inteira


Não percebeu logo tudo o que ouviu nessa noite. Ficou mais aturdido com a sinceridade e franqueza do Pai que outra coisa. Percebeu que não tinha sido um ralhete mas pouco mais lhe fez sentido. Só quase um ano depois, nos fins de tarde do primeiro verão em casa sentado no jardim com o pai, que entretanto doente perdera a fala, é que foi assentando no seu coração o que naquela noite se tinha dito no escritório.

O que era isso de se sentar para escutar o seu Pai, o que era isso de ouvi-lo dar de si o flanco e o tesouro-sabedoria, o que era isso de ter de ser ele com o seu próprio punho durante a vida inteira. Percebeu o que era isso de ser Filho.

Em todas estas coisas meditava. Tinham passado trinta anos e era de novo noite de vésperas. O seu filho ia partir. "Quem sai aos seus, não degenera" pensava ele com um leve sorriso enquanto olhava os retratos, estes agora no seu escritório. Tinha percebido tudo: "Para ser Pai, tive de aprender a ser Filho!".


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