03 maio 2012

A morte do Barão de Teive.

Simão Lucas Pires
© SNPC | 02.05.12

A dúvida parece ser a versão moderna do bom-senso. Dir-se-ia mesmo que, nos nossos dias, ela é o distintivo da gente sensata. Gente que duvida da religião em nome da racionalidade. Gente intelectualmente emancipada. Gente precavida contra as paixões do pensamento, gente que não cai na infantilidade de acreditar em coisas misteriosas. Gente que, na verdade, costuma ter a gramática um pouco baralhada: da boca para fora só saem pontos de interrogação, mas depois é vê-los viver na paz dos pontos finais. Acho muito bem que a humanidade pense – mas, se é para pensar, é para pensar até ao fim! Eis o lema do Barão de Teive, semi-heterónimo de Fernando Pessoa. Que não teve um final feliz.

Trata-se de uma figura literária que ajuda a olhar lucidamente para o que está em causa no grande dogma da modernidade. O dogma diz: não aceites como verdadeiro nada senão aquilo de que possas ter uma certeza racional. Esta, claro, é a formulação oficial, a que vem no papel. Na vida do homem moderno o conteúdo sofre uma alteração importante. Ninguém está interessado em duvidar do que não é interessante duvidar. Entre o homem e o dogma aparece um intermediário particularmente experiente em matéria de condução vital: o desejo do homem. E este desejo, sob a proteção que lhe oferece a cândida imagem de que o dogma goza no mundo, reduz a prescrição enunciada a um útil instrumento de destruição daquilo que não lhe convém. Ter deveres que implicam renúncia e sacrifício, por exemplo, é algo que não convém a nenhuma pessoa sensata.

Desta vez, porém, vamos deixar de parte a esperteza, que é um pecado bem conhecido, e concentrarmo-nos no próprio problema do racionalismo. O Barão de Teive representa essa tentativa de viver a partir da compreensão intelectual. O projeto pode até parecer lógico, saudável e entusiasmante à primeira vista. O mesmo não se poderá dizer da lição que o Barão, ao tentar pô-lo em prática, acaba por aprender. “Desde que existe inteligência, toda a vida é impossível” (1), escreve ele na Educação do Estoico. Eacrescenta mais à frente: “Atingi, creio, a plenitude do emprego da razão. E é por isso que me vou matar.” (2) Porquê? Por que é que alguém que leva a sério o uso da razão acaba num desespero tão grande? Poder-se-ia pensar que o Barão se mata por ter concluído que não há sentido. Mas o Barão mata-se porque o rigor que põe na sua investigação impede qualquer conclusão definitiva acerca do sentido ou da falta dele – e esse nada que está então condenado a habitar é inabitável. Os brandos racionalistas que enchem as nossas cidades esquecem-se que toda a conclusão é um atentado à inteligência, uma interrupção ilegítima do pensamento; não só as conclusões dos outros, mas também o chão óbvio do seu dia a dia livre de misticismos. A personagem de Fernando Pessoa, representante da exigência intelectual máxima, não é capaz de se agarrar a nada, porque um ponto de vista finito nunca está em condições de se fixar seguramente ao que quer que seja. O Barão de Teive é a inteligência a perceber que chegou cá depois do ser – e as consequências insuportáveis de sentir isso com todo o coração. Vivemos já dentro dessa palavra primeira e todas as tentativas de compreendê-la, de agarrá-la pelo colarinho, de encostá-la à parede e pedir-lhe justificações, são tentativas tão desajeitadas quanto as de uma mão que queira agarrar-se a si própria. Isto quer dizer que há algo de muito errado no tom de voz confiante que caracteriza os apologistas da conduta racional da vida. Reza a lenda que Pirro, o cético dos céticos, não se desviava sequer da parede quando andava, pois desviar-se significaria ter uma confiança cega e irracional na tese de que a tal parede era real. O comportamento do pai simbólico do ceticismo pode ser visto como uma tontaria filosófica, mas a verdade é que a caricatura serve para iluminar o fosso de seriedade que separa a dúvida de quem está honestamente preocupado em ver esclarecido o sentido da estranha história em que estamos metidos e a dúvida – que eu apelidaria de “burguesa” para evitar ser ofensivo – desta gente intelectualmente emancipada. A única emancipação intelectual é perceber que, do ponto de vista intelectual, estamos todos perdidos.

Será que já olhámos bem para o que se passa aqui? Vamos morrer e experimentamos a alegria; vemos árvores recortadas contra a noite, as bailarinas de Degas, crianças com pelo e alma que saem da barriga das mães. Há água, a simplicidade incompreensível da água, eletrões em movimento por todo o lado e pensamentos cuja casa é a solidão de cada um. Possuímos a atenção, a crueldade, o amor, a vontade, a inteligência, o egoísmo, a memória. E, perante tudo isto e tudo o mais, perante o desfile de um mistério com infinitas formas, há quem venha falar de racionalidade, como se tivesse um saco para guardar acontecimentos tão espantosos. Chego a pensar que os pagãos antigos, com a sua catrefada de devoções, vendo três deuses atrás de cada objeto, eram menos imaginativos do que estes filhos da modernidade devotos de uma segurança intelectual que nunca ninguém viu. Uma coisa é procurar honestamente a verdade; outra é esperar que caiam silogismos do céu para resolver o problema do significado da existência, como se o facto de eles nunca terem caído não fosse um dado a tomar em conta na resposta que temos de dar.

A razão, de facto, é um dom imenso. Mas, se a deixarmos falar sozinha e até ao fim, ela revelar-se-á o seu próprio abismo. E não é apenas o cético a meio-gás quem tem a aprender com esse facto. Também para os cristãos é importante lembrar o fracasso radical da sabedoria humana. Lembrá-lo pode ser um passo na direção daquela verdade estrondosa que o Evangelho de São João anuncia. “E o Verbo era Deus”, diz o texto (Jo1, 1). Deus não é o ponto alto, o toque sublime, a cereja no topo do bolo da existência; Deus, Aquele que a Cruz e a Ressurreição nos fizeram conhecer, é o próprio sentido de tudo o que há. Isto faz toda a diferença – ou deveria fazer. A diferença, por exemplo, entre ter Cristo como refúgio das horas más e tê-Lo como o Pão nosso de cada dia.

(1) TEIVE, Barão de, A Educação do Estoico, Assírio e Alvim, pág. 28.
(2) Ibidem, p. 57.

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