Henrique Raposo
no Expresso de 27 de Abril
"Os magos matemáticos do mundo financeiro não são os únicos culpados pela crise de 2008, mas estão, sem dúvida, no pódio da culpa. Estes geeks dos modelos matemáticos criaram um mar de dinheiro irreal, sem relação com a actividade económica. Este planeta da abstracção financeira, habitado por algoritmos e derivados, chegou a ser 40% mais rico do que o PIB real do mundo inteiro. Em 2006, o PIB de todos os países do mundo era de 48,6 triliões de dólares, mas o valor de acções e derivados estava nos 67,9 triliões (contas de Niall Ferguson). Os famosos "activos tóxicos" escondiam-se - e escondem-se - nestes 40% de malabarismo financeiro. De forma surreal, esta feitiçaria matemática criou uma torre de marfim que está tão distante de Adam Smith como de Marx. Isto já não é liberalismo ou "capitalismo". Isto é geekismo.
Antes de 2008, os tais modelos matemáticos diziam que uma crise de liquidez era virtualmente impossível. Resultado? A relação entre dinheiro-em-caixa e activos-financeiros-garantidos-por-dívida podia ser de 1 para 19. Foi o que aconteceu à Long-Term, empresa de dois prémios Nobel de Economia, Scholes e Merton. Esta empresa tinha 6,7 mil milhões em depósito, mas possuía 126 mil milhões em bens gerados na ficção financeira. Porquê? Porque os computadores diziam que uma crise de liquidez era uma impossibilidade até ao fim do universo. Problema? Estas fórmulas funcionavam com dados dos últimos cinco anos. Portanto, aquela absoluta certeza científica (repito: a crise do subprime era impossível até ao fim do universo) assentava num cálculo que apenas contemplava dados dos últimos cinco anos. Como é que um cientista pode ser tão irracional? Depois do caos de 2008, um dos geniozinhos da Long-Term disse o seguinte: "se eu tivesse vivido a crise de 1929, estaria em melhores condições para perceber os acontecimentos". Os geeks sabem muito de matemática, mas nada de história. E o habitat da economia é a história, e não a matemática.
Após 2008, seria de supor que esta arrogância científica desaparecesse do centro da finança. Mas isso não aconteceu. Aliás, o cenário ficou ainda mais lunático. De 2008 para cá, os algoritmos aumentaram a sua presença. O que é um algoritmo? É uma fórmula matemática do tamanho de um camião TIR, uma sucessão de instruções matemáticas que cria um mecanismo-que-pensa-por-si, uma máquina que toma decisões sozinha. O sistema de algoritmos (High Frequency Trading - HFT) controlava menos de 25% das transacções dos EUA em 2008; em 2012, já controla 70% das transacções americanas e 40% das europeias. Até parece piada. O factor que nos conduziu ao abismo de 2008 (modelos matemáticos) aumentou a sua dimensão e complexidade. Estamos a curar o doente com mais uma dose da doença. Chegou-se ao ponto em que os fluxos financeiros já não estão em mãos humanas. A matemática em forma de máquina (algoritmo) expulsou os corretores, aqueles humanóides que gesticulavam nas bolsas.
Tal como Jorge Nascimento Rodrigues escreveu nestas páginas, esta situação parece um filme de ficção científica. Eu acrescentaria que tudo isto soa a distopia científica. Quando a venda e a compra de milhões de obrigações é feita num micro-segundo e sem intervenção humana, é sinal de que já estamos num Admirável Mundo Novo, ou seja, já estamos para lá da moralidade humana, a beijar um mundo pós-humano liderado por uma mentalidade técnica e científica que é intrinsecamente amoral. Aliás, esta amoralidade científica ficou evidente numa reportagem do Financial Times (bastante crítica em relação ao domínio do algoritmo no sistema financeiro). Na Terra do Nunca do geek financeiro, a Financial Computing Centre, em Londres, o repórter do FT encontrou um grupo de matemáticos que vive num mundo virtual de fórmulas e linguagem de computador. Muitos destes matemáticos assumem que este paradigma financeiro cria enorme volatilidade, mas também dizem que não estão preocupados com isso. Porquê? Porque só eles podem resolver essa instabilidade provocada por modelos matemáticos. Um dos alunos chega mesmo a declarar que essa instabilidade o coloca "numa situação muito boa". Ou seja, aquelas cabeças criam a doença e o antídoto ao mesmo tempo. Pior: naquelas cabeças, as economias e as sociedades reais não existem, porque tudo é um jogo de abstracção matemática. É chocante a forma como desprezam as consequências que as suas fórmulas têm na vida real (o subprime não lhes pesa na consciência). E tudo isto vem embrulhado na típica arrogância tecnológica da espécie. Um aluno anuncia um futuro em que os bancos serão controlados por algoritmos: "não será precisa qualquer intervenção humana", diz Michal Galas. O facto de a crise de 2008 ter sido causada por esta arrogância informática e matemática é algo que não afecta a fé científica destes indivíduos. Não por acaso, o director da escola, Philip Treleaven, revela a velha snobeira epistemológica das ciências quantitativas. Segundo o rei dos geeks, apenas os algoritmos e demais bicheza matemática garantem um conhecimento efectivo não apenas da finança, mas de qualquer campo de estudo, inclusive música e política ("computational politics"). Esta petulância quantitativa não é nova. O que é novo é o contexto: o centro financeiro do Ocidente deixou-se tomar por cientistas que produzem fórmulas que, como já vimos, são válidas em qualquer parte do universo com a excepção de um lugar: a sociedade humana, a história humana.
O velho debate girava em torno de quem defendia a superioridade moral da economia aberta e em torno de quem apontava o dedo à imoralidade intrínseca do "capitalismo". Sucede que esta finança de geeks e algoritmos não toca no debate moralidade/imoralidade. Porquê? Porque é um sistema intrinsecamente amoral. O seu problema não é a imoralidade da ganância, mas a amoralidade da hubris científica. E isto é um desafio novo. Um desafio que, além de causar desastres financeiros, coloca em causa dois pressupostos clássicos das sociedades liberais. Em primeiro lugar, destrói o princípio da fiscalização. Nós sabemos como fiscalizar a boa e velha ganância dos Gordon Gekkos: a montante, existem reguladores e, a jusante, existem tribunais. Mas como é que se fiscaliza um algoritmo que é incompreensível para 99,9999% dos seres humanos? A opacidade do HFT corrói a necessária transparência e previsibilidade da sociedade liberal. Em segundo lugar, a superioridade da economia aberta, cosmopolita e comercial ("capitalismo" no calão marxista) sempre assentou na sua intrínseca humildade. Adam Smith não inventou nada, apenas constatou um facto: o ser humano procura acumular riqueza para proteger a sua família ("propriedade privada" no calão marxista). Quando desprezam esta simplicidade moral do ser humano, os sistemas económicos falham. O marxismo falhou, porque era um modelo inadequado a seres humanos. Talvez a arrogância científica do marxismo funcione noutro planeta, tal como este mundinho financeiro de geeks e algoritmos."
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