16 dezembro 2013

A Narrativa do Medo.

Acontecia sempre da mesma maneira. Depois de se dar a conhecer, começava lentamente a fazer-se parte das suas vidas. O primeiro encontro era normalmente casual. O trabalho a seguir era uma coisa subtil, laboriosa e paciente, e variava no tempo ao tempo do compasso dessa dança que é construir pontes entre pessoas.

Depois chegava o dia em que as convidava para um fim-de-semana no monte que tinha, com a desculpa de ser uma escapadela das correrias e dificuldades. Era uma herança de família, na Serra Algarvia e chamava-se Monte das Almas. Das 25 que lá foram nenhuma chegou a voltar.

Primeiro adormecia-as no último dia com o vinho em que tinha deitado o químico – normalmente tranquilizantes de uso veterinário. Depois as vítimas acordavam deitadas na cama, num dos quartos da casa, e à cabeceira da cama, dizia-lhes que estava tudo bem, que descansassem, que tinham desmaiado. A seguir saía do quarto. Por nunca mais voltar, as vítimas tentavam levantar-se para sair e descobriam uma porta trancada, uma janela trancada e, por fim, o silêncio do outro lado quando gritavam para lhes abrirem a porta. A certa altura descobriam que o vidro da janela era inquebrável, que a cama estava aparafusada ao chão e que não se conseguia desmontar, que eram de facto prisioneiras.
Ao terceiro dia entrava num repente pelo quarto, disparava o taser e espancava as vítimas até as deixar no limiar da consciência para depois as atar a uma cadeira e continuar a tortura. O quarto dia era de absoluta inactividade. Era para lhes dar tempo para curarem as feridas com o estojo de primeiros-socorros que deixava em cima da mesa-de-cabeceira quando acabava o tormento. Chamava-lhe o Estojo do Quarto Dia. O nome não tinha nada de original. A criatividade guardava-a toda para as suas predações. Ao quinto começava outra vez. Matava normalmente ao fim de um mês.

A Andreia entrou um dia no posto da GNR mais próximo e disse que se queria entregar. Tinha 35 anos e estava coberta de sangue. Ligaram para a Judiciária e foi quando a conheci. Nunca recebi um depoimento tão sombriamente sereno e lúcido. Primeiro senti apreensão, depois suores frios, depois a sala escureceu um pouco. Cresceu em mim enquanto ela narrava todos os “petiscos”, lenta mas inexoravelmente, o mais absoluto pavor. Tinha diante de mim o próprio Medo.


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