in SOL 20 de Julho 2011
Quando nos conhecemos – a Zezinha e eu – em 1970, ainda líamos escritores franceses, víamos filmes italianos e Portugal ia do Minho a Timor. Na Faculdade de Direito de Lisboa todos éramos revolucionários e militantes; todos – fascistas, comunistas e até democratas tout court – pensávamos em mudar o mundo e achávamos que isso era a coisa mais importante das nossas vidas. Por isso éramos, coerentemente, radicais.
Conhecemo-nos por causa disso – da política, da militância política. Fomos, em separado, mas mais ou menos na mesma altura, sujeitos a julgamentos maoístas. O meu passou-se no Bar das Letras, de que eu era frequentador regular, como aliás muita gente de Direito. Durou umas duas horas, num diálogo com altos e baixos, que começou com um requisitório acusativo, inspirado em princípios universais, e acabou numa discussão de fundo: se eu, sendo de Direito, podia ou não estar ali. O júri eram as frequentadoras do bar, todas habituées, que acabaram por ficar do meu lado, o que levou o tribunal a retirar em confusão.
A Zezinha teve uma jornada mais difícil. Exigiu que o professor lhe desse aula, estando a Faculdade em greve geral. Ele, contrariado, lá começou, mas os revolucionários, ao estilo Livro Vermelho, invadiram de roldão a sala e ela ficou sozinha com eles e teve também de explicar as razões da sua conduta anti-associativa e inimiga das massas.
Cada um por seu lado, não tínhamos tido medo, não nos tínhamos deixado humilhar e tínhamos saído intactos de corpo e espírito. O país ainda era de brandos costumes e os maoístas eram portugueses.
Esta identidade circunstancial, comunicada por amigos comuns, criou em nós alguma curiosidade mútua. E um dia – 12 de Março –, também por causa de um abaixo-assinado político, fui a casa dela, no Campo Grande. Ficámos três horas à conversa, eu a fumar e a sujar uns pequenos cinzeiros de prata que o meu futuro sogro estimava particularmente. Liguei-lhe outra vez em Maio, depois da morte do meu pai. Encontrámo-nos na Faculdade e fomos a pé da Cidade Universitária até ao Restauração. E voltámos, também a pé. Nesse Verão jantámos três vezes em Cascais e no Outono começámos ‘a andar’ ou a namorar.
Casámos em 27 de Janeiro de 1972 e a morte separou-nos no dia 6 de Julho de 2011. Líamos escritores franceses. Um dos meus preferidos chamava-se Jean-René Huguenin. Tinha um livro único, La Côte Sauvage, e uma frase de que nós, adolescentes, gostávamos e com a qual concordávamos: «L’amour n’est qu’une extrème attention».
Foi essa extrema atenção que procurámos praticar entre nós e estender à pequena tribo que fomos criando: filhos, netos, amigos. Descobrir, perceber, antecipar o que o outro quer, o que lhe faz falta, o que o vai alegrar. E evitar e prevenir o que o pode magoar ou fazer-lhe mal. A Zezinha tinha essa extrema atenção, até ao pormenor. A nossa amiga Nélida Piñon disse-lhe uma vez: «Você é uma provedora».
Era uma provedora. Organizava os nossos espaços com um amor e uma aplicação inteligentes, pensando-os em função de nós, dos utilizadores. Sempre. Há algum tempo que achávamos o nosso quarto tristonho. Um mês antes de morrer, a Zezinha mudou-o – paredes, cortinas, luzes, tudo. E acabou a decorar um jardim para as crianças, na Quinta.
Mas tinha havido outras ‘atenções’, mais extremas e mais difíceis: a Zezinha nunca discutiu nem pestanejou quando se tratou de me seguir naquilo que eu entendia ser o preço das ideias e da fidelidade a elas.
Primeiro para o serviço militar voluntário em Angola, logo depois do 25 de Abril, com os mandados de prisão, a clandestinidade e o exílio que implicou. Foi um soldado corajoso, pronto, suportando com estoicismo e bom humor as consequências de ‘viver perigosamente’.
Foi assim que fomos daqui para Angola, de Angola para a Namíbia e para a África do Sul, da África do Sul para o Brasil, do Brasil para Espanha, ao sabor dos lances da desfortuna e da sobrevivência com dignidade. Quase sem dinheiro, ajudas ou o que quer que fosse.
Ela era uma menina bem-nascida, mas passou a salto fronteiras, foi para a fila da sopa no campo de refugiados em Culinnan (donde nos tirou, a mim e ao Alfredo Aparício, homens feitos e aguerridos) e aceitou empregos de sobrevivência a vender enciclopédias no Rio.
Nesse tempo, eu achava-me o protagonista das aventuras e desgraças de Portugal, dessa resistência ao fim do Império e à vaga comunista. Como Abraão, que ia falar com Deus de vez em quando, teoricamente era eu quem subia ao monte para tratar das ‘coisas importantes’ enquanto ela, como Sara, se ocupava na prática da logística, das crianças, da organização da tenda. Sempre soube que tinha a parte mais fácil da história.
Depois, como se não chegassem os desastres da guerra e do exílio, a Zezinha ficou gravemente doente: intervenções cirúrgicas mal sucedidas, uma consequente peregrinação por médicos e hospitais, até que, ao fim de três anos, foi operada com sucesso em Madrid.
Mas esta doença significara mais andanças, mais separações dos filhos, mais gastos, voltar à casa zero do Jogo da Glória, quando tínhamos recomeçado a reconstruir as coisas, a caminho da meta.
Muito por pressão dela, voltámos a Portugal. Mais realista, a Zezinha já percebera o que estava vivo e o que estava morto das coisas por que nos tínhamos batido. E que, para transmitir o legado possível, tínhamos que ser como aqueles personagens cujos corpos, atravessados entre gerações, servem de ponte. E nada mais. Se ficássemos na outra margem – a da nostalgia romântica e suicida – não teria valido a pena.
No Inverno de 1978 voltámos a Portugal. Eu comecei a trabalhar no sector privado, a escrever, fundei o Futuro Presente. A Zezinha iniciou uma longa carreira profissional e política, partindo da estaca zero. Serviu as instituições, o Estado, as pessoas, animada pelo serviço público, sem cuidar dos governos desde que lhe dessem independência e autonomia para cumprir as suas funções. Tinha o sentido do bem público, trabalhava com inteligência, com disciplina, com aplicação, com competência e com humanidade. Sabia fazer equipas, chefiá-las, entusiasmá-las.
Tomava decisões e cumpria-as. Como aqui lembrou o António-Pedro Vasconcelos, não atirava as coisas difíceis para a gaveta. Mesmo nas piores situações, dava a cara. Numa instituição pública onde teve de despedir muitas dezenas de trabalhadores falou com eles um por um, interessou-se pelo seu futuro, procurou ajudá-los quanto pôde. Era assim, provedora e cuidadora.
Numa outra fase deste serviço, veio a política. Não já aquela política ideal da adolescência, de franco-atiradores no terreno, mas a política arte ou ofício do possível, ou da escolha entre inconvenientes.
Foi desafiada pelo Manuel Monteiro e pelo Paulo Portas que, na altura, estavam a refundar o CDS-PP, como partido menos ‘centrista’ e mais nacional, solidarista e popular.
Discutimos muito essa opção. A Zezinha pensava que era o modo – e o modo possível – de servir as suas ideias e convicções na forma canónica da política, agora partidária; e que, com independência de juízo e na razão prática dos resultados, podia e devia fazê-lo. Eu tinha dúvidas mas respeitei a vontade dela.
Fê-lo, e fê-lo bem. Teve sempre uma capacidade e um gosto de se relacionar com as pessoas. Porque gostava delas, porque se punha na pele delas, porque procurava ‘a verdade’ de cada uma delas.
Tinha, naturalmente, o sentido evangélico de atenção aos pobres, aos mais abandonados, aos mais desagradáveis, àqueles que ninguém queria. Neles, via o próximo, a imagem de Cristo. Não sei se isso é uma qualidade ou um contra na política, mas ela era assim.
Porque era inteiramente livre, independente, desprendida, até materialmente (mesmo quando pouco tínhamos de nosso, fomos assim).
Estava na política a dizer a verdade, o que pensava, o que sentia, mesmo nas situações mais críticas. Uma pessoa assim corre inúmeros riscos na vida política à portuguesa – que implica tabus, tácticas, conveniências, reserva mental, mais artes de raposa e de serpente que rasgos de leão ou voos de falcão. E os seus adversários (em homenagem a ela uso o termo ‘adversários’ em vez de ‘inimigos’) sabiam usar isso e provocá-la. Desafiada, saía a terreno descoberto onde poderiam abatê-la.
As suas ideias políticas iam sempre ter a uma fonte metapolítica – um cristianismo exigente, ortodoxo, onde a letra da lei procurava sempre o espírito do Sermão da Montanha. Não tinha nada a ver com o cristianismo bonzinho e fácil da porta larga, mas ainda menos com o dos que se sentem senhores das portas do Céu e em nome desse senhorio excluem e desprezam os ‘indignos’.
Essa fé viva, animada por uma oração e uma prática constantes, inspirava o seu pensamento social, uma exigência funda de justiça que não era a caridade bem ordenada e doseada dos convidados ociosos da existência, nem a solidariedade dos tecnocratas do ‘combate à exclusão’.
Era um justicialismo exigente, um cristianismo social, em que procurava servir o próximo, no realismo do estudo das situações de pobreza e de carência que conhecia e procurava conhecer de perto – como directora da Maternidade Alfredo da Costa, como provedora da Santa Casa da Misericórdia, como vereadora da Câmara de Lisboa.
Era a sua forma realista, prática, política, de pôr de pé aqueles sonhos justicialistas da nossa adolescência nacional-revolucionária, alimentada na Política, na Cidadela, nos textos dos nossos mártires políticos, da nossa utopia de Cidade Perfeita, pelo menos tão generosa e tão quimérica como qualquer uma das outras.
Outra utopia da nossa adolescência – a do Império português fraternal, o quinto império multiracial de quatro continentes – reconverteu-a e ajudou-me a reconvertê-la numa paixão profunda pelo mundo que ela conhecera português e que continuou a amar nessa África lusófona e difícil, onde tantos amigos profundos fizemos, entre velhos conhecidos e ex-inimigos.
Estes últimos meses, com um diagnóstico equivalente a uma sentença de morte – pelo menos à luz do estado das ciências médicas que ela respeitava –, mostraram, numa terrível prova de fogo, o que já sabíamos: que nela a teoria era verdade e coerência, que era capaz de viver e de morrer de acordo com os princípios e as normas que proclamara como certos.
Primeiro, não teve medo. Aliás, em toda a vida nunca lhe vi medo, senão quando alguma coisa de grave ameaçou os nossos filhos. Aqui também não. O Cristo das Bem-Aventuranças em que sempre acreditou, o amigo de Lázaro, não a abandonou. Fez tudo o que tinha de ser feito para tratar-se, submeteu-se disciplinada e animosamente à dureza dos tratamentos, à procura de alternativas. Com uma serenidade, uma doçura, uma preocupação de não nos preocupar ou sequer de nos ocupar muito.
Foi estóica e heróica, mas a sorrir, lúcida, sem ressentimento nem revolta, aceitando o que achava que agora lhe era exigido. E mantendo todas as rotinas da normalidade, das suas ocupações: indo ao Parlamento, fazendo campanha eleitoral, estando nos debates da televisão, na rádio, nos jornais, nas instituições onde colaborava, com toda a normalidade.
Quando nos conhecemos e nos primeiros anos de casados jogávamos muitos jogos – de cartas, o Risk ou jogo da Guerra, o Monopólio, a Bolsa. E às vezes também, por curiosidade, a mãe de todos esses jogos – o Jogo da Glória, originalmente o Gioco dell’Oca ou Jeu de l’Oie. Tínhamos, vinda não sei donde, uma versão d’Épinal, com bonecos do século XIX, que desapareceu.O jogo tem 63 casas com prémios e penalidades e, para ganhar, é preciso acertar mesmo na casa 63. Na casa 58 está a morte – e quem, ao chegar perto do fim, lá cai, tem de voltar ao princípio.
As minhas filhas dizem-me que a Zezinha queria deixar um ‘jogo da glória’ da sua autoria, para eu interpretar. Não apareceu, por enquanto. Mas vou, com ‘extrema atenção’, interpretar os sinais que ela deixou nestas 59 casas.
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