Portugal é um país rico com um crescente problema de pobreza. Pior, este surto tem características que o tornam especialmente difícil de combater.
O desenvolvimento eliminou há anos entre nós a velha pobreza, aquela miséria endémica e perene que submergia largas regiões desde sempre. Mas nunca se pode esquecer que a pobreza muda. Nunca vamos conseguir erradicá-la porque, como a violência, desonestidade e doença, surge de novo, em formas diferentes, sempre rejuvenescida. Portugal deixou de ser um país pobre, mas a pobreza permanece.
A maior parte dos pobres sofre a nova versão das antigas carências. Nos bairros de lata das cidades e nas zonas degradadas das aldeias vivem ainda em pobreza as classes mais desfavorecidas. O optimismo progressista, que toma o desenvolvimento como omnipotente e se considera na cabina de controlo da realidade, decretou que a desigualdade ia desaparecer. Mas, sem a fome e a desgraça de outros tempos, ela continua tão persistente e paralisante sempre. Aliás, como um vírus multirresistente, conseguiu absorver os mecanismos que a sociedade montou para a combater. Hoje as pensões mínimas, rendimentos de inserção, subsídios de desemprego são frequentemente formas de mascarar, alimentar e perpetuar a pobreza.
Depois existe a pobreza que o azar cria. Doença, acidente, crise económica, desemprego são consequências inevitáveis da vida humana. Também aqui o optimismo ingénuo fica indignado pela teimosa resistência do acaso que a técnica era suposta ter eliminado há muito. Mas, apesar dos inegáveis efeitos excelentes dos muitos mecanismos de protecção que o desenvolvimento permitiu, da política monetária à segurança social, o mundo continua um local inseguro. A actual crise internacional, gerada no cume da sofisticação civilizacional, é disso prova suficiente.
Finalmente temos aquela pobreza que o próprio desenvolvimento da sociedade impõe. Quebra da família, droga, imigração, exploração, prostituição, solidão são realidades novas ou redefinidas pela modernidade que geram os fenómenos de carência mais paradoxais. Esta é a pobreza que a ideologia da era mediática nem consegue entender. É nestes danos colaterais do progresso que o nosso tempo se vê incapaz de actuar, pois ele é a própria causa da miséria. Finge tratar as situações como equivalentes aos anteriores, mas promove-os ao mesmo tempo que os julga combater.
À medida que Portugal se desenvolve, este terceiro tipo de pobreza vai aumentando. Mas na década perdida do nosso desenvolvimento, a nossa crise estrutural que desaguou na actual crise mundial, foram os dois primeiros tipos que mais subiram. Fizeram-no de forma inesperada, criando surpreendentes dificuldades aos mecanismos de solida- riedade. É verdade que em alguns momentos, como na derrocada da indústria têxtil tradicional em 2005, subiu a pobre-za convencional, que as instituições conhecem bem e para quem foram concebidas as ajudas. Mas nesta recessão desde 2008 as coisas são bastante diferentes.
Boa parte da mi-séria mais recente acontece em famílias que não costumavam ser pobres nem lhes passava pela cabeça cair nessa situação. São pessoas da classe média, que viram os seus empregos nos serviços desaparecer, sem grandes possibilidades de regresso. Teriam hipóteses de trabalhar e organizar a vida, mas só abandonando os sonhos e descendo um degrau na estrutura social. Apesar da crise, há lugares de trabalha-dores não especializados que os imigrantes vieram ocupar aos milhares. Mas pessoas com formação, até superior, nem sabem fazer essa opção. Estão presos numa terrível miséria, por vezes com casa e carro, mas sem comida.
Esta é a mais recente forma, urbana e escolarizada, que adoptou o versátil flagelo da pobreza, e que os mecanismos de solidariedade social, sobretudo na rígida estrutura pública, têm dificuldade em reconhecer, quanto mais apoiar. A pobreza muda e todos os casos são dramáticos. Mas o pior é talvez a pobreza muda, que fica envergonhada e apática perante a desgraça que cai de surpresa.
João César das Neves, in DN 08.02.2010
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